Francisco Ferreira: “Sempre achei que só me sentiria bem fazendo trabalho voluntário”
A serra da Arrábida está ligada ao despertar da consciência ambiental de Francisco Ferreira, presidente da Zero, activista desde os dez anos. A sua cidade, Setúbal, foi um viveiro de ambientalistas.
Pedimos a Francisco Ferreira, o presidente da associação ambientalista Zero, para escolher um sítio que fosse importante para ele para fazer esta entrevista. Ele escolheu a serra da Arrábida, com vista para o convento. Porquê percebe-se na conversa: foi por causa da Arrábida que se tornou activista ambiental.
Começou cedo, aos dez anos, pouco depois do 25 de Abril, quando os temas ambientais estavam a ganhar algum protagonismo. Houve um acontecimento que chamou a atenção de setubalenses como ele: a classificação do Parque Natural da Arrábida em 1976. “No ciclo preparatório, fazia sessões para as outras turmas sobre a Arrábida”, contou.
Mais tarde, a associação regional de ambiente que ajudou a fundar em Setúbal envolveu-se na operação para acabar com as casas clandestinas na Arrábida, que era uma nódoa na paisagem. Estes foram os primeiros passos de um percurso que levou este engenheiro do Ambiente e professor universitário à presidência de duas das mais influentes organizações ambientalistas, a Quercus e a Zero.
Aqui fica uma conversa com vista para o Convento da Arrábida.
Porque é que escolheu a Arrábida para esta entrevista?
Há aqui um episódio em que eu estive envolvido há imenso tempo. Agora ninguém dá por isso, mas havia centenas de casas clandestinas. A grande operação de retirar as casas foi feita pelo [secretário de Estado do Ambiente] Carlos Pimenta em 1986. Na altura, eu estava no projecto Setúbal Verde…
Que idade tinha?
Isto começou em 1984. Portanto, para aí 18 anos. Comecei na Liga para a Protecção da Natureza (LPN), em 1976, que é altura da criação do Parque Natural da Arrábida...
Isso foi aos dez anos!
Aos dez anos, exacto. Na altura, eu andava com alunos mais velhos, porque o irmão do meu cunhado estava no liceu com uma série de pessoal conhecido, que tinha para aí 15, 16 anos. Como andava com ele, também me envolvi. E o Parque Natural da Arrábida foi criado em 1976, até aí só tínhamos o Parque Nacional da Peneda-Gerês. Comecei a trabalhar com colegas do ciclo [preparatório] a fazer sessões para as outras turmas sobre a Arrábida. Fizemos uns slides — era com uns rolos da Ektachrome [Kodak]. Mandava-se num pacotinho para Espanha e depois vinham os slides revelados.
Onde iam buscar informação?
Íamos à sede do Parque Natural da Arrábida, aos livros do [geógrafo e historiador] Orlando Ribeiro, que escreveu sobre a Arrábida, à poesia de Sebastião da Gama, que tem um livro que se chama, aliás, Serra Mãe.
Da LPN passámos para fazer o jornal Setúbal Verde e depois para o projecto Setúbal Verde, onde surgem uma série de pessoas conhecidas. O Viriato Soromenho Marques, por exemplo. O José Paulo Martins, que é do conselho geral da Zero [ex-presidente da Quercus]. O José Manuel Palma [ex-presidente da Quercus], o Eduardo Carqueijeiro, que viria a ser director do Parque Natural da Arrábida. É curioso que aquele grupo ia politicamente desde o PSD ao PRP [Partido Revolucionário do Proletariado], era o espectro todo, mas dávamo-nos muito bem. Fizemos o levantamento do ponto de vista jurídico e em mapa das construções clandestinas [na Arrábida]. Fomos saber quem eram os pescadores…
Mas as casas eram de pescadores?
Havia quatro ou cinco. O resto era tudo de pessoas de Setúbal e de outros sítios que tinham ali casa para o Verão. Mas marcava imenso a paisagem.
E vocês já tinham competências para fazer isso?
O António Ataz tinha acabado a licenciatura em Direito e fez a parte jurídica. Eu estava para aí no segundo ano da faculdade. As minhas competências foram desenhar o mapa com outro colega de Setúbal, o Manuel Galrinho. Foi essa base de trabalho que permitiu ao Carlos Pimenta, em 1986, derrubar as casas todas, numa operação complicada. Olhar para a Arrábida e para o Portinho, antes e depois de 1986, é completamente diferente.
Houve uma cena com piada. Depois de termos o mapa pronto, o Manuel Galrinho diz-me que eu sujei as calças. E eu digo-lhe “tu também”. E eram carraças! Centenas e centenas de carraças. Acabámos nus, a sacudir calças, ao pé da praia, no Portinho da Arrábida. Não estava era ninguém.
O projecto Setúbal Verde era o quê, concretamente?
Era uma associação regional de ambiente. O dinossauro do movimento ambientalista é a LPN. Mas no pós-revolução de 1974, começaram a surgir uma série de pequenas organizações. Muitas vão juntar-se na Quercus, que não foi mais do que quase uma federação onde desapareceram várias organizações regionais para passar a existir uma estrutura nacional. Mas em 1985, quando a Quercus estava a nascer, o Projecto Setúbal Verde não se integrou logo. Isso foi creio que em 1987. Portanto, não sou fundador da Quercus.
Nós, no Centro Juvenil de Setúbal, começámos por ser LPN, mas tínhamos uma pedalada arrasadora. Saímos e começámos por criar o jornal Setúbal Verde [e depois o projecto]. As nossas acções mais emblemáticas foram na construção clandestina na serra da Arrábida e no encerramento de algumas pedreiras. E no fecho da Praça do Bocage ao trânsito. A parte má, que obviamente também me marcou, é a presença da [cimenteira e pedreira] Secil na Arrábida.
Que continua hoje.
Continua. É um dilema do ponto de vista económico e do ponto de vista social ter ali uma cimenteira daquelas. Mas acho que todos aprendemos que não é fácil tomar decisões que reúnam sustentabilidade, questões ambientais, económicas, sociais, de governança.
Não será fácil tirar a Secil daqui.
Não é, mas acho que está na altura, desde há muito tempo.
Mas então o que o levou para o ambientalismo foi a dinâmica da criação do Parque Natural da Arrábida?
Foi um conjunto de circunstâncias. Em 1976, o ambiente começou a ganhar protagonismo e eu tinha uma sensibilidade, junto com amigos e colegas meus, em relação ao Sado e à Arrábida. E também alguma curiosidade em relação à biologia e à geologia.
Houve uma ideia muito sedutora que me marcou. Não encarar o Parque Natural da Arrábida ou o Estuário do Sado apenas como áreas de conservação da natureza, mas fazer a ligação ao património histórico, cultural, gastronómico. E ligar isso às actividades económicas. Ter um olhar não apenas numa lógica de conservação da natureza, mas muito mais integrado.
No Sado é a mesma lógica. A presença dos golfinhos, a ideia de o Sado ser uma maternidade. E há a dimensão social e económica da pesca, da indústria, que surge em Setúbal nos anos 1960, com um peso muito grande em termos de poluição. Eu também tinha uma ligação grande às pescas. Em Setúbal, havia várias fábricas de conservas de peixe. E uma das últimas era da minha família. Era o meu pai que a geria.
Como é que se chamava a fábrica?
Era a fábrica Atlas. Era mesmo em frente à minha casa em Setúbal, onde eu nasci e vivi até 2002.
E depois há uma coisa importante, eu fui escuteiro, desde os cinco, seis anos, até aos 15, 16. E vínhamos acampar na Arrábida. Era terrível para subir a serra, eu sempre fui gordinho. Acampávamos em zonas absolutamente espectaculares. Isso proporcionou-me uma educação grande.
Os seus pais apoiaram esse interesse pelo ambiente?
É curioso que eu tenho uma diferença muito grande de idade em relação aos meus irmãos e aos meus pais. Mas os meus irmãos, um tem mais 20 anos do que eu e o outro, mais 19 anos. A minha irmã tem mais dez anos do que eu. Sempre me fascinou como é que os meus pais conseguiram lidar com três gerações diferentes. Quando eu nasci, os meus irmãos estavam a acabar a faculdade, quase.
O meu irmão, que é médico, esteve na Guiné-Bissau, como médico militar, mas depois foi para médico de saúde pública. Esteve em vários locais, em Aljustrel: lembro-me de ir lá e ficar impressionado com o impacto das minas. O irmão mais velho de todos foi como cooperante para Cabo Verde. Acho que fui muito influenciado por eles, por uma lógica de tentar fazer um caminho social, só que na área do ambiente. Eles fizeram na área da medicina, ou no caso do meu irmão mais velho, que foi professor.
Achei sempre que só me sentiria bem fazendo trabalho extra voluntário. O que do ponto de vista profissional me tem prejudicado, porque é muito difícil conciliar estar a tempo inteiro numa universidade, fazer investigação e coordenar uma equipa, e ao mesmo tempo descobrir horas extras.
E como é que foi passar da acção local em Setúbal para a Quercus e para a acção a nível nacional?
Foi um desafio muito grande... Acabei o curso em Engenharia do Ambiente em 1989. Nos meus dois últimos anos já tinha uma vida entusiasmante, porque estava a estudar, mas tinha uma bolsa de investigação. E tinha um part time na Reserva Natural do Estuário do Sado.
O que é que fazia na reserva?
Fazia tudo. Era só eu, o director, uma secretária e os vigilantes da natureza. De licenciar ou não aquaculturas, pareceres sobre indústria, guiar visitas de estudo, fazia tudo. Aprendi imenso. O director da reserva ensinou-me a escrever pareceres imbatíveis. E na faculdade trabalhei com o António Câmara, numa investigação ligada à simulação em ambiente. Também aí foi fascinante.
Em 1990 fui fazer o mestrado para a Virginia Tech, nos Estados Unidos, durante um ano e meio, dois anos, na área da água. E depois vim para cá fazer o doutoramento, mas na área do ar.
Como é que se tornou presidente da Quercus?
Quando regressei, voltei a envolver-me. Nessa altura, o Viriato [Soromenho Marques] era presidente da Quercus e foi ele quem lhe deu visibilidade. Foi na primeira Presidência Aberta do Ambiente, em 1994, que a Quercus ganhou protagonismo.
Mas o Viriato, ao fim de três, quatro anos, deixou de ser presidente, passou para o José Manuel Palma, que fica talvez um ano e meio, e a Quercus aí atravessa uma fase um bocado conturbada e não havia ninguém para ser presidente. Avanço eu. Na altura com 30 anos [em 1996]. Era um desafio grande, porque tinha tido o meu primeiro filho em 1995 e estava a fazer o doutoramento, que acabei em 1998. Fui presidente da Quercus entre 1996 e 2001.
Há aqui uma coisa engraçada, uma sequência de presidentes da Quercus – José Manuel Palma, Viriato Soromenho Marques, eu e o José Paulo Martins…
Tudo setubalenses.
Tudo gente do Setúbal Verde. Foram tempos entusiasmantes. E agora na Zero também. Na Zero, acho que temos a vantagem de, em termos de direcção, sermos um grupo muito coeso do ponto de vista do relacionamento pessoal. Acho que é isso que permite a uma organização ter a capacidade de trabalho que a Zero tem.
Como é que consegue conjugar ser professor na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e ao mesmo tempo presidente da Zero?
Perco um bocado os fins-de-semana, tenho uma família muito compreensiva. E é verdade que nunca se consegue ser excelente nos dois sítios. Se calhar podia ser um presidente da Zero muito melhor, e a mesma coisa do ponto de vista profissional, e obviamente podia ter mais tempo com a família. Mas se o mundo acabasse hoje, estava perfeitamente bem comigo mesmo, isso é o mais importante.
O que é que faz para reduzir a pegada de carbono?
Bem, eu tenho uma pegada carbónica enorme, à custa das minhas viagens de avião. Viajo às vezes por razões associadas à faculdade, mas também por causa de reuniões fundamentais da Zero. Para irmos para Bruxelas ou à Cimeira do Clima das Nações Unidas, não dá para irmos de comboio.
Eu diria que a minha principal forma de reduzir a pegada é usar o transporte público. Moro em Palmela e não gosto de levar o carro para Lisboa, por imensas razões, porque não posso estar a ler um livro ou a falar ao telefone. Quando vou para a Faculdade, na Caparica, tenho de ir de carro até à estação. Mas depois vou de comboio e de metro. Se for para Lisboa, vou só de comboio e depois gosto imenso do esquema de bicicletas partilhadas de Lisboa.
Não sou vegetariano, mas muito por influência da minha filha, acabamos por reduzir bastante a pegada associada à carne. Vivo numa banda de vivendas e tenho a facilidade de poder pôr no telhado painéis solares térmicos, portanto não gastamos electricidade nem gás, literalmente, entre Abril e Outubro. Temos compostagem e separamos embalagens. Temos tudo o que é uso eficiente da água. A roupa também, eu não devia dizer estas coisas, mas não sei de quando é que são estas calças, nem a camisa…
O meu grande pecado ambiental são os quilómetros feitos de avião para as reuniões e confesso que gosto imenso de viajar. Dá-nos perspectiva.
Houve uma evolução desde os tempos em que começou a ser activista até agora?
Os assuntos estão muito diferentes. Houve um momento muito marcante à escala internacional, que foi um pouco irrepetível, que foi a Conferência do Rio, a Eco 1992. Foi quando começámos a pensar em termos de sustentabilidade. Na altura, não havia a percepção das grandes crises, porque ainda eram pouco latentes.
Em 1990, o primeiro relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) reconheceu que não se sabia se havia alterações climáticas ou não e se era na actividade humana que estava a culpa. Agora, estamos a constatar [os efeitos das alterações climáticas] quase diariamente. Mas não se tinha a dimensão dessa crise. Nem da biodiversidade.
[Em Portugal], há 31 anos, os temas estavam centrados no que era passar de um país que não tinha cuidado com o ambiente para um país que, por obrigação da integração da União Europeia, passou a ter de olhar para as questões ambientais.
O que é que se discutia no final dos anos 1990? As lixeiras. Estavam em todo o lado e, na altura, o Ministério do Ambiente dizia que não era assim tão mau. Sobre as estações de tratamento de águas residuais que era preciso construir. Definir quais as áreas de Portugal que deviam fazer parte da rede Natura 2000. Estávamos numa fase completamente diferente.
Só que, infelizmente, não soubemos dar o salto maior para as políticas de redução, de reutilização. Ou seja, apostámos muito nas soluções a jusante, que eram indispensáveis, e pensámos pouco no montante. A aposta foi fazer estações de tratamento de águas residuais, mas nada no uso eficiente da água. Apostámos em resolver o problema das lixeiras, mas não na reciclagem e redução de resíduos. Agora isso está a sair-nos caro.
Qual é agora a questão ambiental mais complicada que Portugal enfrenta?
Os resíduos são das questões mais complicadas, por causa das metas [europeias] que temos de cumprir para redução da produção de resíduos para aterro e para incineração. Continuamos a enfiar a cabeça na areia, a não perceber que o mais eficaz é a recolha porta a porta [de biorresíduos].
Outro tema muito forte, que é relacionado com o clima, com a poluição do ar, o ruído, é a mobilidade. Como é possível estarmos a gastar milhões e milhões para apoiar os passes e andamos cada vez mais de automóvel?
É desastroso que não tenhamos uma rede ferroviária consistente e vermos aumentar o transporte baseado nos combustíveis fósseis. Porque não temos coragem de, no centro das cidades, retirar o tráfego automóvel. Temos autarcas que têm o mesmo pensamento da década de 1980, de 1990. E vemos cidades europeias só com transporte público, bicicletas, para as pessoas andarem a pé no centro. Ninguém é capaz de fazer a mesma coisa em Lisboa, no Porto, nas cidades médias. Ninguém tem coragem porque acha que vai perder votos. E se calhar perde-os, não digo que não. Mas é triste estarmos na cauda da Europa do que é uma cidade sustentável.
Como é que vê a mobilização dos jovens e dos estudantes contra as alterações climáticas, este activismo climático?
Nunca participei numa manifestação tão grande como a que teve lugar em 2019 sobre o clima, do Marquês de Pombal até São Bento. E a primeira manifestação em que participei, em 1976 ou 1978, éramos para aí uns dez, se tanto, na Praça do Bocage, em Setúbal. Mas conseguimos que viesse a RTP.
Acho que esse activismo está a ter o seu peso, as suas consequências. Mas a pandemia estragou a mobilização e é preciso perceber o que é que está a falhar. Não houve mais nenhuma manifestação com a dimensão da de há quatro anos. E por isso, muitas das acções, não só em Portugal como noutros locais da Europa, têm sido muito mais esporádicas, de grupos de manifestantes e de formas que nem sempre são consensuais para o resto da população.
É urgente fazer essa reflexão e remobilização. E não apenas dos jovens, mas também da sociedade. Estamos muito focados nos jovens, mas já não dá aquela ideia de “os jovens vão ser o futuro de amanhã”. Não, temos poucos anos para mudar e ou mudamos todos ou não vamos lá.