Sempre a água

Uma menina agarrada a uma boneca de papel no meio de um edifício semidestruído.

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Depois da tragédia, o antigo lazareto foi encerrado, tendo as meninas sido distribuídas por outras casas e instituições. A Sãozinha foi para um convento no centro de Lisboa, dirigido pela mesma ordem das freiras do asilo, Religiosas de amma Joquebede do deserto. Antes de partir, a irmã gorda, em silêncio, aproximou-se dela e entregou-lhe um embrulho, o presente com que brincava todos os natais, a boneca de papel. A Sãozinha quis abraçar a freira, mas teve medo de que esse gesto fosse mal recebido, depois do episódio triste do Litúrgico, mas sobretudo receou que um instante de afecto, como aquele que teve com a Glória, lhe fosse imediatamente roubado, levado pelo destino, esse destino que parecia fazer valer-se da água, sempre da água, levando-lhe a mãe, levando-lhe a Glória, mar e chuva, ou como se lê no Génesis: águas de baixo, águas de cima. De qualquer modo, mesmo que a Sãozinha tivesse superado os seus receios, não teria tido a possibilidade de traduzir num abraço a felicidade de receber a boneca, pois a irmã gorda, mal entregou o embrulho, virou-lhe as costas e afastou-se, deixando a Sãozinha com os braços por estender, com possíveis beijos esmagados entre os dentes, com um abraço por partir em direção à freira, que desapareceu na esquina de um dos corredores da ala que sobreviveu à derrocada. A Sãozinha levantou então o braço para acenar, para se despedir, um adeus solitário e triste, sem mais testemunhas, apenas uma menina agarrada a uma boneca de papel no meio de um edifício semidestruído.

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