Lotaria deprimente

É evidente que o orçamento geral para a Cultura tem de ser aumentado e mais bem gerido.

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Anunciou recentemente o senhor ministro da Cultura um aumento da dotação do próximo programa de Apoio a Projectos artísticos. Mais um número numa combinação que tornará alguns esperançosos mas que, para outros, continuará a maré de azar.

Conforme apontou uma associação do sector, desconhece-se o fundamento deste número, uma questão de “fezada”, talvez. Teria sido aproximadamente este o montante necessário para corrigir o erro crasso no último concurso a Apoio Sustentado, em que apenas uma das suas duas linhas viu inesperadamente quase duplicada a dotação inicialmente prevista, mantendo-se a outra sem qualquer alteração, o que teve – tal como diversas vezes avisado e ignorado, consequências desastrosas. Mas pronto, siga para bingo.

Repare-se que se trata de um concurso para artistas e entidades com um percurso profissional consolidado, ainda que, estranhamente, o histórico de investimento público no seu trabalho não seja tido em conta. Os relatórios das Comissões de Acompanhamento (fazer figas para que estes profissionais sejam contratados com as mesmas condições a que o caótico novo Estatuto do Trabalhador da Cultura obriga), são também surpreendentemente ignorados.

Para quem esgrime tanto número acenando com aumentos que, claro, não podem ser infinitos porque “o dinheiro não dá para tudo”, é muito desperdício.

Embora o afirme, talvez o senhor ministro não “compreenda a insatisfação dos excluídos dos apoios”. É claro que a maioria das pessoas, incluindo as minorias, não costuma gostar de ser excluída, mas, nesta altura do campeonato, talvez o principal problema sejam a sorte e o azar.

Candidatam-se projectos artísticos a financiamento público através de um formulário que apenas aceita texto (nem uma imagem, nem um vídeo ou som, ainda que sejam feitas avaliações quantitativas quanto aos elementos “estéticos” das propostas). Os prazos são sistematicamente desrespeitados por quem tem o poder de os estabelecer e fazer cumprir: a Direcção-Geral das Artes (DGArtes), cujos funcionários têm tarefas tão esquizóides como zelar para que se cumpram condições inviabilizadas a priori pelo organismo a que pertencem (grande galo). As actividades propostas organizam-se em, curiosamente, “fichas” que são contabilizadas numericamente, fazendo por exemplo equivaler uma peça construída por 40 pessoas ao longo de seis meses a uma conversa após um espectáculo. No Apoio Sustentado, apenas é possível apresentar um plano de actividades e orçamento detalhado para o primeiro dos dois ou quatro anos que serão financiados. Ainda que sejam apurados valores tão concretos como investimento angariado ou taxa de dependência face à DGArtes, quando os resultados saem, qualquer contestação que proponha um argumento comparativo é imediatamente rechaçada, porque “cada caso é um caso”. Existem figuras como a “audiência de interessados”, em que nem todas as contestações são incluídas, ou “recursos hierárquicos”, obtendo uns resposta, e outros não. Bluff, portanto. Dos que pedem uma reunião presencial, há aqueles a quem sai a rifa e os que não têm sorte nenhuma.

Quanto à via da contestação judicial, dado os infindáveis anos e recursos que consome, é um caso claro de que o azar de uns é a sorte de outros.

Enfim, recuando algumas casas neste jogo da inglória, ficamos sem saber qual a razão para o reforço e decisão parcial, a cartada jogada pelo ministro quanto ao Apoio Sustentado. Também não se vislumbra porque não decidiu investir então o que agora anunciou investir a seguir, depois de equiparar distintas instâncias de apoio, esvaziando de sentido um sistema pelo qual é responsável, e mantendo a táctica já gasta de ir atirando umas fichas para que o jogo possa continuar e dando ideia de que profissionais envolvidos são um bando de jogadores viciados e insatisfeitos que não sabem perder.

Quanto ao Estatuto dos Profissionais da Cultura, parece também urgente rever as regras do jogo, já que nem os croupiers as dominam e parece que estão todos a abandonar a mesa. E quanto à Rede de Teatros e Cineteatros, os dados foram lançados mas há quem diga que não há acasos...

É evidente que o orçamento geral para a Cultura tem de ser aumentado e mais bem gerido. Independentemente de fazermos figas, vamos lá trabalhar a ver se não nos sai um triste jackpot.

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