Quanto mais me amas, mais bem (um bocadinho) te trato: ter um chefe narcisista é “ter a vida num inferno”

Querem tapetes vermelhos estendidos aos pés, não têm empatia, são manipuladores, mas também sedutores. Nos cargos de liderança, abundam narcisistas. O custo é o bem-estar dos seus subordinados.

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Há pistas para identificar potenciais narcisistas Cátia Mendonça
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Era Narciso ainda uma criança quando o adivinho Tirésias vaticinou que o menino só teria uma longa vida “se não se conhecesse”. Narciso cresceu, tornou-se belo, vaidoso, desejado por uma fila de pretendentes que teimava em crescer, apesar da arrogância e desprezo do jovem em relação a todas as que se deleitavam com a sua beleza. Porque ninguém era bastante para Narciso.

Até que se apaixonou. Abeirou-se de um lago e, no reflexo da água, conheceu, finalmente, alguém merecedor da sua atenção. Ninguém o era, a não ser ele mesmo. Mergulhado na sua imagem, Narciso morreu de fome, porque nem só de ego se alimenta um corpo.

Todos temos Narciso em nós. Não vale a pena franzir o sobrolho; é, na verdade, desejável que assim seja. Caso contrário, não seria preciso ter um espelho em casa, não faria falta cortar o cabelo, também não precisaríamos de comprar roupas bonitas, apenas práticas, e acabar-se-ia a indústria da cosmética. Todos somos algo narcísicos porque, à partida, sentimos amor-próprio — que, ressalve-se, é diferente de não sentir empatia pelos outros, de acreditar que todos nos devem bajulação, holofotes e passadeiras aos pés, de manipular para atingir os fins e de um glorioso complexo de superioridade.

Sara (nome fictício) encontra estas características no chefe. Entre berros, manipulações e desvarios, a investigadora até já o ouviu dizer estas palavras, mesmo assim: “Vocês deveriam andar a estender-me tapetes vermelhos e, em vez disso, estão a opor-se a mim.”

Quando o conheceu, há mais de uma década, achou-o uma pessoa “inteligente, razoável, interessante, ambiciosa”. As “boas ideias e intenções” convenceram-na a trabalhar com ele, numa altura em que queria mudar de vida. Mas quando o trabalho começou e o viu a interagir com outros colegas, Sara apercebeu-se de que “havia qualquer coisa que não batia certo”. O homem interessante que conhecera naquele dia era, afinal, “bruto, mal-educado e arrogante com todos os que estão abaixo dele”.

“Se alguém lhe fizer frente, há logo gritaria e agressividade. É mesmo muito bruto, sem qualquer filtro. Já o ouvi dizer: ‘Faça-me isto ou está despedida, ouviu?’ Quer dizer, ninguém consegue despedir ninguém assim…”, conta.

É “manipulador”, “megalómano”, “vive num mundo de fantasia”: “Acha-se o melhor do mundo, acha que o local onde trabalhamos é o melhor do mundo — ou, se não é, vai ser muito em breve. Diz que vai mover mundos e fundos, sabe o que cada um quer ouvir, diz coisas que sabe que acharíamos espectaculares, só para nos manipular.” E não perde uma oportunidade (não precisa de uma, aliás) para se gabar do rol de “políticos e milionários” com quem se relaciona.

Estas atitudes coincidem com alguns traços do transtorno de personalidade narcisista. De acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria, para alguém ter este diagnóstico deve apresentar cinco ou mais dos seguintes comportamentos: “Sentido grandioso de importância; fantasias ilimitadas de sucesso, poder, fama; convicção de que é especial e único; necessidade de admiração excessiva; sentimento de que merece favores especiais; exploração interpessoal; falta de empatia; inveja dos outros; atitudes arrogantes ou altivas.”

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O narcisismo é um dos três vértices da tríade sombria (ou negra), ao lado da psicopatia — “pessoas muito focadas nos resultados, que tendem a fazer o que têm de fazer para atingir objectivos” — e do maquiavelismo — “pessoas que sabem perfeitamente o que joga a seu favor no momento”. É um tema obrigatório quando se fala em “liderança destrutiva”, que Pedro Neves, doutorado em Psicologia Social e das Organizações e professor na Nova SBE, se dedica a estudar.

Pessoas que se encaixam na tríade sombria tendem a ter relações disfuncionais, tendências agressivas e pouca empatia. E ainda que haja estudos que nos dizem que a psicopatia e o maquiavelismo “são vistos como mais “obscuros’ ou ‘tóxicos’” e estejam mais associados à “falta de preocupações morais”, também o narcisismo pode ter consequências nefastas, principalmente quando estas pessoas estão em posição de poder.

A prevalência do narcisismo e da psicopatia “na população em geral e no sentido de caso clínico é muito baixa”, começa por ressalvar o investigador. “Todos nós somos mais ou menos narcísicos, mas não necessariamente patologicamente narcísicos.” Mas se a prevalência desta patologia na população em geral “é à volta de 1%”, quando olhamos para os chief executive officers (CEO) ou gestores de topo, este número dispara para “entre os 15 e os 18%”. Porquê?

Seduzir para vencer

As pessoas narcisistas tendem a ser especialmente “extrovertidas”. “São fantásticas, um sucesso em qualquer salão, têm uma presença marcante, não têm grande pejo em falar das suas histórias de glória”, descreve Pedro Neves. São, acima de tudo, “sedutoras”. Lidam bem — precisam, aliás — do elogio, o que transmite uma certa confiança, porque, à partida, acreditamos mais numa pessoa autoconfiante do que numa que não tem fé em si própria.

Mais ainda, os altos cargos são atractivos para pessoas narcisistas. Respondem às suas aspirações, pois é lá que “podem exercer maior autoridade e influência”, aponta Maria João Guedes, professora auxiliar no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa. “As posições de topo servem o propósito de alcançarem sucesso, glória e reconhecimento e é onde podem deixar um legado maior”, continua.

O desejo de poder no trabalho pode estar relacionado com três factores, diz-nos um estudo da Universidade do Quebeque em Montreal: dominância, prestígio ou liderança. O que motiva as pessoas dá-nos pistas sobre a sua ligação (ou não) à tríade sombria e “pode indicar comportamentos positivos ou negativos”.

Pessoas com grande atracção pela dominância, por exemplo, “são mais prováveis de ter níveis altos em todos os traços da tríade sombria”, relacionando-se “fortemente com o maquiavelismo e moderadamente com o narcisismo e a psicopatia”; o prestígio “motiva particularmente os narcisistas”, uma vez que se baseia na “procura por admiração ou respeito”; já a liderança é a que está “menos ligada à personalidade obscura — e, se estiver, é principalmente aos narcisistas”.

Esta necessidade de reconhecimento, de afirmação enquanto personalidade inspiradora até, dá “gasolina” à vontade de subir a escada empresarial. E isso concretiza-se. Um estudo com 172 pessoas confirmou que “indivíduos altamente narcisistas tornam-se CEO mais rápido”. The Perks of Narcissism: Behaving Like a Star Speeds up Career Advancement to the CEO Position reporta que há traços deste tipo de personalidade que “afectam positivamente” a ascensão ao papel de líder — personalidade autoritária, dominância, extroversão, auto-estima e excesso de confiança —, porque se sobrepõem àqueles que são geralmente tidos como essenciais para desempenhar um papel de liderança: autoconfiança, à-vontade para correr riscos, aptidão para liderar ou ambição.

É, por isso, “razoável esperar que quanto mais um indivíduo tem personalidade narcísica, mais fácil e rapidamente será considerado apto para liderar”. Os traços obscuros tornam-se ainda mais relevantes nesta ascensão se se tratar de um homem. Investigadores da Universidade do Alabama e da Universidade do Iowa reportaram que as mulheres são penalizadas por mostrarem tendências psicopáticas, mas os homens são recompensados pelos mesmos comportamentos”. E a que custo? Da felicidade dos trabalhadores.

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Filipa, que prefere não partilhar o apelido, trabalha há mais de dez anos com um chefe que não sabe se pode ser considerado narcisista, mas que “tem claramente várias características que fazem sobreposição” com esse tipo de personalidade. Resumidamente: “Faz a vida dos empregados um inferno.”

Ninguém diria. Quem entra naquele escritório, pensa estar “no mundo das maravilhas”, diz a designer de 35 anos. “Todos acham que ele é uma pessoa maravilhosa, impecável, não passa pela cabeça de ninguém que cinco minutos antes esteve aos berros com um empregado.”

A agressividade foi-se aguçando quando assumiu a liderança sozinho, depois de algum tempo a partilhá-la. A forma como tratava as pessoas “descarrilou” e o modo de funcionamento “desregulou-se”. É “irascível, não tem paciência, não consegue delegar, impõe imensos procedimentos, mas é o primeiro a quebrá-los”.

Fazer controlo apertado de tudo e todos, é comum nos narcisistas. Sara relata o mesmo: “[O meu chefe] É muito ‘control-freak’ [controlador]. Tem de ser ele a fazer, a decidir, ele é que sabe tudo.” E isso pode atrasar ou estagnar o trabalho dos subordinados, como acontece com Filipa, que diz não conseguir avançar com as tarefas sem a opinião do chefe. “Ele está a cumprir a função de várias pessoas, porque não delega, e, à custa disso, não consegue fazer bem as suas. Não tem paciência para as 30 mil coisas que tem na cabeça, então dispara em todas as direcções.” E de preferência bem alto, porque, “quando grita com alguém, é à frente de todos, não há excepções” — ao contrário de quando as coisas correm bem. Aí, é “um ‘obrigado’ muito baixinho”.

Precisamos de chefes narcisistas?

Ainda que não haja consenso, alguns estudos apontam que os traços de personalidade obscuros podem, na verdade, “ser úteis no curto prazo”. Dizem que estes líderes são eficientes, destemidos, que puxam o barco, aumentam a performance da empresa e dos trabalhadores e são particularmente capazes em alturas de crise.

“São bastante resilientes e estão dispostos a explorar alternativas menos habituais e mais arriscadas, que podem ajudar a ultrapassar momentos mais difíceis”, explica Maria João Guedes. A sua predisposição para o risco e vontade de alcançar grandes feitos faz com que, por exemplo, “persigam o crescimento através da internacionalização e vendas de alto risco”, reporta o estudo The Perks of Narcissism: Behaving Like a Star Speeds up Your Career Advancement to the CEO Position.

Mais ainda, investigações recentes “mostram que empresas geridas por narcisistas têm pontuações mais elevadas em termos de ESG” (responsabilidade social empresarial, em português, que inclui o compromisso com o ambiente, sociedade e governança empresarial). Não é claro, contudo, se “isso acontece porque os gestores narcisistas estão mais conscientes da necessidade de responsabilidade social ou se vêem nisto um meio de captar atenção positiva e reconhecimento”, salvaguarda a investigadora.

O mesmo estudo refere também que os CEO narcisistas tendem a ter “mais disponibilidade para cometer crimes, para que as empresas onde trabalham pareçam mais prósperas”, ou ainda a entrar em práticas de fuga ao fisco.

A tendência para o comportamento pouco ético manifesta-se também com os seus subordinados, que normalmente são mais novos, mais inexperientes, e mais fáceis de controlar. É comum que estes líderes tenham funcionários descontentes, “ambientes de trabalho destrutivos e que minem o fluxo de comunicação dentro da empresa”.

Ao fim de algum tempo, “o fascínio inicial desaparece”. A “constante promoção pessoal e insistência de reconhecimento dos seus feitos, principalmente quando estes não existem ou não devem ser a si atribuídos”, os “níveis irrealistas de confiança” e a “glorificação em momentos impróprios” podem tornar-se insuportáveis para os outros, afiança Maria João Guedes. Haverá, então, uma espécie de nível óptimo de narcisismo?

“Muitas vezes confundimos narcisismo com auto-estima”, enquadra Pedro Neves. “Mas se retirarmos o elemento ‘para me sentir bem comigo, preciso de empurrar os outros para baixo’, deixa de ser narcisismo e passa a ser auto-estima. Esta diferença nem sempre é clara, no entanto.” E uma é bem mais nociva do que a outra.

Foi durante a pandemia que Filipa sentiu “um grau de confiança, calma e preparação” que não esperava do chefe. “Ele foi capaz de desenvolver um plano, deu-nos uma data até quando conseguia pagar ordenados e ainda eram uns meses largos”, conta. Isso tranquilizou-a numa altura de tantas incertezas.

Refere ter notado desde sempre “cuidado na gestão” da empresa, o que dá “segurança” —, mas ficou particularmente surpreendida com a organização e até “preocupação ao nível individual” demonstrados pelo chefe num momento difícil.

A designer acredita, contudo, que essa estabilidade é conseguida “à custa do sacrifício dos empregados”: “Ele puxa, puxa, puxa, até quebrar as pessoas. Com os clientes, é um amor, promete mundos e fundos, porque, na realidade, não é ele que está a oferecer, é o tempo pessoal e a sanidade dos empregados dele.”

Já Sara não confia na competência do chefe. Acredita “na sua capacidade impressionante de seduzir pessoas”, o que traz alguns benefícios externos, mas, internamente, lamenta que “as coisas não aconteçam porque tem de ser ele a decidir e a resolver” tudo e, depois, “nada se faz”. O sucesso que vai tendo, atira, é alcançado “à custa de um conjunto de trabalhadores que são infelizes, não têm condições para trabalhar e se sentem assediados”.

São os melhores do mundo. Ou não?

Apesar de nenhum chefe conseguir prosperar sozinho, é recorrente que estes não atribuam crédito a outros que não eles próprios e que se sintam merecedores de bajulação, gratidão — o tal desejo de um tapete vermelho estendido aos pés.

Margarida tem 26 anos e trabalha na indústria criativa. Está há pouco tempo neste trabalho, mas já pensa em mudar. As expectativas iniciais foram defraudadas pelo convívio diário com um chefe que constantemente a relembra de como “sofreu muito na sua altura” ou como as gerações mais novas “não são suficientemente gratas” pelo trabalho que têm. “Ele queria que eu estivesse sempre a dizer o quão óptimo é estar ali, quão boa é aquela oportunidade. Que estivesse constantemente a enaltecer a experiência e o trabalho dele”, relata.

Disse-o, aliás, de forma “quase directa”: “Começou a exigir que fosse mais afável com ele, que andasse mais de volta dele, [a sugerir] que isso era a forma de eu subir ali. Nunca em tom de assédio [sexual], mas sim de criar uma amizade.”

Os restantes funcionários da empresa “têm uma certa subserviência para com ele” e é com eles que Margarida sente que o chefe faz “jogos de poder mais refinados”: desde “manhas a telefones estragados e ruído, que faz questão que exista, para confundir as pessoas”. São, ainda assim, esses funcionários que suportam a empresa, considera. “Parece que ele é que faz tudo, e claro que ele tem algo a dizer, mas as pessoas que lá estão é que conduzem o barco.”

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A “percepção de performance” dos gestores narcisistas “não se correlaciona com a performance real das empresas”. A visão do seu próprio trabalho tende a ser “distorcida e exagerada”, afiança Maria João Guedes, que publicou um estudo sobre este tema.

Para uma avaliação mais fidedigna, é importante, antes de olhar para o que esses gestores dizem valer, olhar para “indicadores objectivos da empresa, especialmente aqueles que não possam ser manipulados”, como dados contabilísticos, “principalmente a rendibilidade do activo e das vendas”.

Por isso, quando o chefe de Filipa garante que “a empresa só tem sucesso porque os clientes fazem questão de lidar com ele”… à partida, não será bem assim. A designer sabe, aliás, “as horas extras” que faz, assim como Margarida, que diz estar “mais ou menos subentendido” que naquela empresa se deve trabalhar a mais: “Chegas às 10h, mas não sabes se vais sair às 18h, às 20h ou às 22h.”

Além das repercussões psicológicas, “os gestores narcisistas captam uma ‘maior fatia’ do valor criado para si, à custa de uma ‘menor fatia’ para as remunerações dos trabalhadores, sendo a assimetria dos salários bastante acentuada”, afiança Maria João Guedes, que comprovou esta tese num estudo com gestores portugueses (Narcissistic Leaders Do Not Share: The Relationship Between Top Managers’ Narcissism and the Distribution of Value Added).

Identificar (e lidar com) narcisistas

Mas se estes comportamentos são tão flagrantes, como é que os narcisistas continuam em lugares de poder?

“Muitas vezes, estes casos vão passando em branco porque a organização não tem noção de que isto está a acontecer”, afiança Pedro Neves. Por isso mesmo, pode ser vantajoso reportá-los, uma vez que as próprias empresas têm noção de que “a médio/longo prazo há um preço tremendo a pagar”. Sabem que se pessoas com estas características “não sentirem as suas necessidades satisfeitas”, podem “tornar-se mais agressivas”. “Estas pessoas estão muito associadas a dificuldades de relação com outras pessoas. São tóxicas por natureza. Se assumirem papéis de liderança, não só são tóxicas, mas têm também um contributo mais forte na criação de climas tóxicos.” No limite, irá culminar no “burnout das equipas, falta de motivação, e até abandono da empresa”.

Mas nem sempre é tão linear assim, porque nem sempre é possível deixar um emprego. Ainda que o impacto destes chefes nos seus subordinados extravase as paredes do escritório e tenha repercussões psicológicas: “Acaba por se criar uma falta de compreensão por parte de quem quer muito salvar-me”, lamenta Margarida, que já teve conflitos com o namorado e a família; nem sempre compreendem por que não deixa aquele emprego.

Apesar do encanto que possam ter, há estratégias para encontrar potenciais narcisistas. Pedro Neves recorda a que o CEO de uma companhia aérea disse usar: se, num processo de recrutamento, há uma dinâmica de equipa, e há uma pessoa que tenta chamar para si demasiada atenção, deve “acender-se a luz amarela do semáforo”. Ou, ainda, se alguém participa pouco num processo de discussão, mas na hora de apresentar a ideia quer assumir um papel de destaque, convém prestar atenção a outros comportamentos.

O ónus deve estar “nos recursos humanos e nas empresas” — são eles que devem ter ferramentas para “identificar e filtrar” estes casos, não podendo “recair sobre a vítima a responsabilidade de resolver”. As empresas devem “criar consciência do que são processos destrutivos, de forma a impedir que as equipas fiquem psicologicamente confortáveis com estas dinâmicas”, reporta um estudo da Universidade de Groningen (Países Baixos). Podem também “limitar o poder destes líderes através de despromoções para posições onde possam causar menos danos”.

Mas nem sempre há uma entidade a quem reportar ou alguém superior com quem falar. Às vezes, é o superior máximo que assim se comporta. Nesse caso, como é o de Filipa, desabafar com os colegas é “um salva-vidas”. “O meu grupo de amigas nasceu, em grande parte, porque as condições ficaram tão más com ele, que foi literalmente união através do trauma”, confessa. Está “a trabalhar activamente” para arranjar outro emprego e a terapia ajudou-a a perceber que “do outro lado está só um ser humano, que é tão frágil como nós”.

Foi também com acompanhamento psicológico que Margarida conseguiu destrinçar alguns dos comportamentos do chefe, identificar a manipulação, e lidar com eles de forma “mais racional”. “É pena dizer isto, mas há um braço-de-ferro. E eu já vou conseguindo ganhar algum terreno. Estas pessoas lucram muito com a ignorância, mas eu tenho confiança de que a minha geração vai mudar isso. Uma das nossas bandeiras é a saúde mental, já não ficamos num emprego a vida toda a ser explorados e à espera da nossa oportunidade. Se não é aqui, passo para outra.”

Sara tentou “ignorar”, apesar de afectar “muitíssimo” a sua vida pessoal. Mas não deu. De cada vez que tinha uma interacção com o superior, sentia que “não podia compactuar” com determinados comportamentos, que tinha mesmo de ir embora dali. “Ficava mesmo maldisposta com o tratamento que dava aos meus colegas. Há ali trabalhadores muito bons, apesar das condições difíceis que temos.” Por isso, Sara e os colegas começaram um movimento de reivindicação. “Esta solidariedade entre nós, o estarmos juntos a tentar melhorar as coisas e a resistir a esta atitude de bullying tem-nos dado muita motivação. Eu ainda não sei se vou mudar, mas já comecei a considerar seriamente.”

Mais de dez anos depois, Filipa já se sente capaz de fazer frente ao chefe (“Os bullies, quando são confrontados perdem um bocadinho a bravata, não é?”). Há uns tempos, respondeu “está bem” a uma ameaça de despedimento “por causa de uma coisa que estava fora do sítio”. “Ameaçou-me com o pior que podia fazer e eu fiquei impávida e serena. E aí ele perdeu o trunfo...”

Mas o que funciona com o chefe de Filipa pode não funcionar com o de Sara, ou com o de quem leu este texto e se reviu nele. “Enfrentar é a pior escolha, porque a melhor é procurar uma saída o mais rapidamente possível.”

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