Como é que não esquecemos músicas da infância mas nunca sabemos da chave do carro?

As estruturas das músicas servem como um “andaime” para nos ajudarem a lembrar da letra. O ritmo, a melodia, as rimas e aliterações também são determinantes.

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Andrea Piacquadio
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Porque é que muitas pessoas não se lembram onde puseram as chaves do carro, mas conseguem cantar a letra toda de uma música que já não ouviam há anos? Será que as músicas vivem numa espécie de lugar privilegiado na nossa memória?

A música tem uma longa história de ser usada como uma ferramenta mnemónica, ou seja, para ajudar a memorizar palavras e informação. Antes da linguagem escrita, a música era usada para transmitir oralmente histórias e informação. Ainda vemos muitos exemplos disso hoje em dia, na forma como ensinamos o alfabeto ou os números às crianças, ou — no meu caso — os 50 estados dos Estados Unidos. Na verdade, desafio qualquer adulto a tentar dizer o alfabeto sem ouvir aquele ritmo familiar na cabeça.

Há muitas razões para a música e as palavras se tornarem intimamente ligadas à nossa memória. Em primeiro lugar, as estruturas das músicas servem como um “andaime” para nos ajudar a lembrar a letra que lhes está associada.

Por exemplo, o ritmo e a batida da música dão-nos pistas sobre o tamanho da próxima palavra da sequência vai ser. Isto ajuda a limitar as escolhas de palavras, por exemplo, ao assinalar que uma palavra de três sílabas se encaixa num ritmo particular da música.

A melodia de uma música também pode ajudar a segmentar um texto em partes que fazem sentido. Isto permite-nos lembrar segmentos mais longos de informação, do que se tivéssemos que decorar cada palavra individualmente. As músicas também têm, muitas vezes, recursos literários, como a rima e a aliteração, que facilitam a memorização.

Canta

Quando já cantamos ou ouvimos várias vezes a mesma música, ela torna-se acessível através da nossa memória implícita (subconsciente). Cantar a letra de uma música muito conhecida é uma forma de memória processual. Isto é, é um processo altamente automatizado, como andar de bicicleta: algo que somos capazes de fazer sem pensar muito.

Uma das razões pelas quais a música fica tão entranhada na nossa memória é porque ouvimos a mesma música muitas, muitas vezes ao longo da vida (mais do que lemos o nosso livro favorito ou vemos o filme de que mais gostamos).

A música é também fundamentalmente emocional. Na verdade, estudos mostram que um dos principais motivos para as pessoas ouvirem música é a diversidade de emoções que provoca.

Investigadores descobriram que os estímulos emocionais são mais facilmente relembrados que os não emocionais. Tentar lembrar o abecedário ou as cores do arco-íris é mais motivador se for acompanhado de uma música — e conseguimos lembrar-nos melhor mais tarde, sempre que fizermos uma conexão emocional.

Música e letra

Nem todas as investigações anteriores reportaram que a música facilita a memorização de letra. Por exemplo, quando ouvimos uma música pela primeira vez, é mais difícil decorar a melodia e a letra, do que apenas a letra. O que faz sentido, dadas as múltiplas tarefas envolvidas.

Ainda assim, depois desta dificuldade inicial e de sermos expostos a uma música várias vezes, há mais efeitos benéficos. Uma vez que a melodia já nos é familiar, a letra torna-se mais fácil de lembrar, do que se tentássemos decorar a letra sem música de fundo.

Os estudos nesta área já estão a ser aplicados para dar auxílio a pessoas com doenças neurodegenerativas. Por exemplo, a música parece ajudar pessoas com Alzheimer e esclerose múltipla a lembrarem-se de informação verbal.

Por isso, da próxima vez que guardares a chave do carro num sítio novo, tenta criar uma música para te lembrares de onde a deixaste — e, em teoria, isso deverá ajudar-te.


Exclusivo PÚBLICO/The Conversation
Kelly Jakubowski é professora de Psicologia da Música na Universidade de Durham

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