O que fazem os chefs-estrela com os tomates do Douro?
Dezoito restaurantes juntam-se este ano à Festa do Tomate Coração de Boi do Douro, que decorre no próximo fim-de-semana. Fomos ver como o preparam os cozinheiros de vanguarda.
Bem podia ser o paradigma da nossa restauração: um produto sazonal de excelência, de cultivo local e artesanal, directamente da horta para a cozinha. O drama é que isto, que deveria ser o normal e natural, acontece agora apenas em ambiente evocativo e de celebração, e precisa até de uma organização que o potencie.
Vai já na VIII edição a Festa do Tomate Coração de Boi do Douro, cujos méritos vão já muito para além do despertar para a questão, de chamar a atenção para as qualidades e sabor únicos e diferenciadores dos tomates cultivados no calor das hortas do Douro e Trás-os-Montes. Com ela veio também a inversão da tendência de declínio que trouxe de volta a paixão pelas históricas hortas das quintas do Douro, o orgulho nos seus produtos e o protagonismo para o trabalho dos hortelãos.
Também a envolvência com os restaurantes da região, que, associando-se ao evento que pretende destacar os melhores exemplares dos tomates da região, os incluem nas suas cartas durante o mês de Agosto. São este ano já quase duas dezenas, entre eles quatro cujas cozinhas são lideradas por chefs distinguidos com as famosas estrelas do Guia Michelin. DOC, de Rui Paula (duas estrelas na Casa de Chá da Boa Nova, Matosinhos); Bistro Terrace Quinta do Tedo, de Óscar Geadas (uma estrela no G Pousada, Bragança); Quinta do Seixo, de Vasco Coelho Santos (uma estrela no Euskalduna, Porto); e Bomfim 1896, na Quinta do Bomfim com Pedro Lemos (uma estrela no Pedro Lemos, Porto), puxam também pelo brilho do tomate-coração-de-boi do Douro.
No caso de Pedro Lemos, a envolvência já não se restringe apenas à sazonalidade da colheita. Sem olhar à qualidade, cor ou tamanho de cada tomate, o cozinheiro estabeleceu parceria com duas hortas locais e recebe toda a produção. É deliciosa a criativa sopa fria com gelado, que a par da reconfortante salada com o tomate fatiado este mês está na carta do Bomfim 1896 – e na Casa dos Ecos, também na Quinta do Bomfim, que ao fim-de-semana continua a acolher clientes –, sendo que o tomate entra também nos caldos e bases dos mais diversos cozinhados. Para aproveitar o sabor e qualidade diferenciadora do coração-de-boi duriense, todo o restante tomate dessas duas hortas é preservado para ser utilizado ao longo do ano no enriquecimento das mais diversas preparações.
Como anfitrião do concurso deste ano – na próxima sexta-feira, dia 25 de Agosto – o restaurante da Quinta do Seixo está a servir um gaspacho e uma salada, como que a abrir o apetite para as combinações com tomate que dará a conhecer durante a festa e servirá depois enquanto houver tomate. É impactante a frescura do gaspacho, que combina na perfeição a acidez e sabor maduro do tomate do Douro com um belo vinagre. Também duriense, provavelmente!
Num espaço onde Vasco Coelho Santos procura a sofisticação rústica com uma cozinha de fogo e lenha, o gaspacho (13€) tem como complemento uma fatia tostada de pão coberta com lâminas de tomate, berbigão e tiras de pimento vermelho assado. Já a salada (14,50€) combina as fatias grosseiras do tomate com folhinhas de salsa, pickle de pé de funcho, cubos de ameixa e uma espécie de crème fraîche com molho de ervas. O contexto de saborosa rusticidade é reforçado pelo belo pão, fofo e crocante, de confecção própria que se parte à mão. Uma gulodice!
Tem, por seu lado, um ar de arranjo floral a salada com coração-de-boi (16€) que é levada à mesa no restaurante de Rui Paula. Uma espécie de larga e vaidosa rosa vermelha empratada em fundo branco, resultando as pétalas sobrepostas do corte transversal do tomate em carpaccio. A coroa central dá-a a mozarela de búfala polvilhada com minivegetais e temperada com delicado caviar de pérolas de azeite e os aromas fumados de cubinhos de tomate braseados. Ou seja, na sua crueza simples e saborosa, o tomate do Douro também pode ser servido com veste sofisticada.
Já na vizinha Quinta do Pego, a aposta de Óscar Geadas centra-se sobretudo na complexidade e intensidade dos sabores. A horta avista-se num patamar mesmo em frente da sala e terraço onde funciona o elegante bistro. Mas este não foi ano de fortuna para o coração-de-boi, já que o que se vê são os tomateiros destroçados por um golpe de calor, daqueles fulminantes e traiçoeiros que por vezes dizimam áreas de vinha. Assim aconteceu também este ano com a horta da quinta, pelo que o chef teve que procurar o produto na vizinhança.
No prato que está a servir (22€), o tomate é cortado em juliana e procura destacar os seus sabores, textura e acidez na combinação com uma terrine de perdiz, saborosas lâminas de cecina – equivalente a presunto, mas de vaca – de Miranda, entremeada, de gordura saborosa, folhinhas de canónigos, tiras de beterraba e gomos de laranja. Uma salada fresca, comandada pelo equilíbrio doce a ácido do tomate e o contraste de texturas e sabores.
Coração de boi, pregado e farinha de pau
De volta ao Bomfim 1896, é genial a envolvência e elegância com que Pedro Lemos compõe a sopa fria (12€). No fundo da taça, como jóia, uma bola de gelado obtida com a emulsão de tomate assado, enquadrada por pequenas pérolas que são minitomates alongados, amarelos e vermelhos. É sobre eles que é servida a sopa fria de tomate, límpida e elegante, como se de um chá vermelho se tratasse. O gelado mantém a textura macia, não se dissolve, mas o sabor intenso, ácido e maduro, do coração-de-boi do Douro torna-se mais evidente a cada colherada que mistura gelado e sopa e intensifica-se à medida que os minitomates vão rebentando na boca. Há um efeito surpresa que reforça a satisfação e elegante harmonia cromática que decorre de todo o conjunto.
Numa vertente mais gastronómica e para refeição completa, é servido também pregado, que acompanha com farinha de pau com tomate-coração-de-boi. Não será propriamente um prato económico (38€), mas como é sabido só o que é fraco sai caro. Assado no forno a lenha que domina a cozinha aberta à sala por detrás do balcão de serviço, o pregado suculento leva para o prato a envolvência e aroma das brasas, enquanto a farinha de pau gelatinosa guarda toda a essência do tomate em cuja base foi cozinhado. Há memórias que se avivam, aromas e sabores que se tornam eternos. E esta é a magia da cozinha.
A festa do tomate-coração-de-boi não se esgota, no entanto nas cozinhas dos chefs estrela. Além destas, também outros aderem durante este mês de Agosto a um receituário orientado para os apreciadores deste fruto carnudo e suculento que tem no Douro e em Trás-os-Montes sabor e textura diferenciadas. Em alguns casos em formato de menu completo, como acontece no Quintal, do hotel Six Senses, na Toca da Raposa, ou nos restaurantes Lagar e Taberna do Carró, em Torre de Moncorvo.
Muito mais que um concurso, a escolha do melhor tomate-coração-de-boi do Douro é sobretudo o pretexto para um encontro festivo, informal e envolvente que junta os principais produtores e quintas do Douro.
Uma festa que nas anteriores edições passou já pelas quintas Dona Matilde, De La Rosa, Vallado, Ventozelo e Nápoles (Niepoort) e assenta agora arraiais na moderna unidade de enoturismo da Quinta do Seixo, propriedade da Sogrape. Um encontro que decorre sempre em dois tempos, já que, depois do concurso, no sábado há também a habitual festa na aldeia. O mercadinho de Arroios, junto a Vila Real, onde entre música e petiscos há provas e conversas e é possível comprar o coração-de-boi.