Falta de reforma da floresta poderá pôr em causa meta de neutralidade carbónica

Portugal está a rever o Plano Nacional de Energia e Clima 2030 com metas ambiciosas, mas o investimento nas energias renováveis poderá não chegar para as cumprir.

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Nelson Garrido
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Há objectivos ambiciosos para o país atingir a neutralidade carbónica e reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, mas não basta actuar pelo lado do aumento das energias renováveis em substituição dos combustíveis fósseis: é fundamental aumentar a captação de carbono e isso implica fazer rapidamente a reforma da floresta. “A floresta que temos hoje não permite o objectivo de neutralidade até 2050 e para isso precisamos de uma estratégia para a melhorar, de modo a que capture mais carbono”, sublinha ao PÚBLICO o ministro do Ambiente e da Acção Climática, Duarte Cordeiro.

Depois de ter sido o primeiro país do mundo a assumir o objectivo da neutralidade carbónica em 2050, Portugal comprometeu-se a antecipar a meta em cinco anos na actual revisão do PNEC – Plano Nacional de Energia e Clima 2030 (a partir da nova Lei de Bases do Clima) e que entregará em Bruxelas em 2024.

Outra meta antecipada foi a quota da incorporação de 80% de energia renovável na produção de electricidade de 2030 para 2026 (no primeiro semestre deste ano era já de 69%) e o aumento de 47% para 49% da renovável no consumo final de energia, enumera Duarte Cordeiro. Para esse desempenho contribuem os investimentos na eólica terrestre e no mar, e no solar.

Estima-se que o novo PNEC represente um investimento de 43 mil milhões de euros nas renováveis, mas será essencialmente privado (o anterior fica-se pelos 20 mil), e pressupõe um aumento do consumo (que o pagará). Os apoios públicos serão apenas para o hidrogénio verde e o biometano, de cerca de 255 milhões de euros.

Porém, para a mitigação dos efeitos das alterações climáticas é preciso contar também com a floresta, com a água (com os pactos regionais), e travar a erosão costeira, avisa Duarte Cordeiro. De acordo com dados do portal Florestas.pt da The Navigator Company, a floresta portuguesa capturou 10,5 milhões de toneladas de carbono em 2019 (o último ano de que há registos), o valor mais alto desde 2015. Em 2017, devido aos grandes incêndios, o carbono removido pela restante floresta não compensou o emitido pelos fogos. Para atingir o objectivo da neutralidade, é preciso a captura de pelo menos 9 a 13 milhões de toneladas de carbono anuais.

E para “mexer” na floresta é necessário concretizar o Programa de Transformação da Paisagem para os territórios com elevada perigosidade de incêndio, mudar o ordenamento da paisagem, fortalecer a gestão agrupada dos terrenos, trocar as espécies plantadas por outras mais resilientes e desenvolver a economia da floresta. Um plano ambicioso, admite o ministro, mas fundamental.

Evitando uma avaliação da inacção dos governos no combate às alterações climáticas, o ministro diz ser preciso “acelerar” decisões e a aplicação de medidas para responder aos “avisos constantes dos painéis de cientistas” na dimensão ambiental, mas também na da “autonomia e segurança”, como mostrou, por exemplo, a guerra na Ucrânia. “A nossa revisão do plano é a noção de que é preciso ser mais rápido [a responder aos desafios do clima], defende Duarte Cordeiro.

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Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente: “É preciso ser mais rápido” a responder aos desafios do clima Daniel Rocha

Com apenas um ano de vigência e já com alguns atrasos na regulamentação de várias matérias, a Lei de Bases do Clima, embora “arrojada e audaciosa”, poderá não ser suficiente a curto prazo. “A realidade das alterações climáticas vem a galope”, admite Tiago Brandão Rodrigues, presidente da Comissão Parlamentar de Ambiente. “O poder político não pode duvidar da mais-valia dos dados da ciência”, e a luta tem de ser feita “com emergência mas sempre com razoabilidade, de forma ajustada, paulatinamente e com entendimento social – porque se dizemos que não se pode usar o carro de segunda a sexta-feira, as pessoas vão recusar as imposições. E é preciso que todos sintam que estão no mesmo barco [para colaborarem nas soluções].

“A política não antecipa; vai atrás e mal”

Quando se fala de ciência e clima, o filósofo e professor Viriato Soromenho-Marques prefere a imagem de que “há vários graus de ignorância e que os cientistas são os menos ignorantes” e lamenta que nem sempre as várias disciplinas e as academias trabalhem em conjunto — nomeadamente a separação entre as chamadas “ciências da terra” e as restantes, como a política, economia, sociologia ou direito. “A economia é analfabeta nestas questões e a política também, e estão totalmente entrosadas”, afirma, e “há uma décalage assustadora entre o diagnóstico e os caminhos de saída”. Mas se a ciência, com base em dados de observação, consegue prever a tendência para onde vamos, também é certo que “está tudo a ser mais rápido do que se pensava”.

O filósofo e activista que foi presidente da Quercus no início dos anos 90 considera que não tem havido proactividade dos governos nacionais. Embora tenham tentado acompanhar o aumento da consciência ambiental com um reforço da despesa pública com o ambiente, esta tem sempre dependido do discurso e do dinheiro vindo de Bruxelas. “Em matéria ambiental não conseguimos ter uma cultura transversal, como existe, por exemplo, na integração europeia ou no papel do Estado na educação.”

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Tiago Brandão Rodrigues: “O poder político não pode duvidar da mais-valia dos dados da ciência”, e a luta tem que ser feita “com emergência mas sempre com razoabilidade, de forma ajustada, paulatinamente e com entendimento social" ADRIANO MIRANDA

Em questões de ambiente, “a política não antecipa; vai atrás e mal”. Exemplos? Em vez de apostar na agricultura familiar e no consumo de proximidade, o Estado português “apoia os fundos de investimento que controlam as empresas de culturas intensivas no Alentejo e no Algarve”; decide “um novo aeroporto numa zona húmida e prepara a autorização para minas de lítio a céu aberto”. No Reino Unido houve novas autorizações para prospecção de petróleo e gás no mar do Norte e em Itália e na Alemanha reabrem-se minas de carvão, descreve.

“O modelo que nos trouxe até aqui está a ser aprofundado e acelerado (…) e é um modelo de crescimento e de negação objectiva da crise ecológica”, avisa Soromenho-Marques, criticando a “lógica de atrair capital estrangeiro a todo o custo”. E estende a crítica a Bruxelas, que “tem um discurso ecologista e verde, mas depois tem a prática contrária”.

Antevê, por isso, um futuro problemático: “Na História há colapsos das sociedades. Corremos o risco de ter sociedades ingovernáveis, incapazes de prestar serviços básicos à população [como a saúde ou alimentação]. Soromenho-Marques recusa a “falácia dos teóricos do capitalismo neoliberal de que o crescimento acaba com a desigualdade: entre 1901 e 2002, a população mundial multiplicou-se por quatro e o PIB aumentou 40 vezes, e a verdade é que não estamos dez vezes mais ricos”.