Periquitos: os novos alfacinhas são verdes e usam colar

Em várias zonas da capital, já é difícil imaginar os fins de tarde sem as vocalizações ruidosas dum bando de aves que, pela cor verde e caudas longas, lembram papagaios. São os periquitos-de-colar.

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O periquito-de-colar (Psittacula krameri) Manuel ROMARIS/GettyImages
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Nos últimos anos, as árvores dos jardins de Lisboa encheram-se de umas aves verdes que muitos pensam ser pequenos papagaios. São os periquitos-de-colar e, em Portugal, habitam maioritariamente na capital. Originários de países africanos e asiáticos, chegaram aprisionados mas conseguiram fugir das gaiolas e hoje proliferam nos céus alfacinhas. São os novos habitantes da cidade.

O sítio que no século XVI era apelidado de Campo de Alvalade, hoje é conhecido pela maioria dos lisboetas como Jardim do Campo Grande. Desde 2018, contudo, o nome oficial é Jardim Mário Soares. Na zona em que é atravessado pela Avenida do Brasil, à direita de quem vem da universidade, encontra-se um edifício da Câmara Municipal de Lisboa. É lá que se concentram os serviços de jardinagem, responsáveis pela manutenção dos mais de 13 hectares deste espaço verde estruturante.

Ali trabalha Anastácio Fernandes, funcionário da autarquia desde 1981. Está muito atarefado junto ao edifício, pese o facto de o relógio marcar 15h53 — faltam apenas sete minutos para a hora de saída. Anastácio, encarregado de jardinagem, recebe com um sorriso prestável. Pausa os seus afazeres e partilha o que sabe acerca dos “papagaios verdes”. É assim que este sexagenário chama aos periquitos-de-colar, espécie que se recorda de ver desde os primeiros anos em funções nos jardins da cidade.

Anastácio veio de Cinfães do Douro para trabalhar em Lisboa. Conta, entusiasmado, que gosta muito do que faz. Acrescenta: “Podia, mas ainda nem pus os papéis para a reforma. Deve ser antes do final do ano.” Dos 42 anos de trabalho que já leva, Anastácio dedicou os primeiros 30 ao Jardim da Estrela e está no do Campo Grande há 12. Curiosamente, o primeiro dormitório de periquitos-de-colar em liberdade foi identificado no Jardim da Estrela, já lá vão quase duas décadas, e, actualmente, é no Jardim Mário Soares que se localiza o maior dormitório da espécie em Portugal. Anastácio Fernandes parece ter sido acompanhado ao longo dos anos por estas aves, acerca das quais diz: “São lindos. São muito giros. Não estragam nada, nem chateiam ninguém.”

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Estima-se que existam até 2500 periquitos-de-colar em Portugal, 87% dos quais em Lisboa Tariq Sulemani/GettyImages

Opiniões idênticas partilham dois dos jardineiros da sua equipa que, entretanto, se juntam à conversa. Um deles trabalha neste jardim há 25 anos. Tem a mesma idade de Anastácio, mas diz que já pôs os papéis para a reforma e espera que o deferimento chegue no próximo mês. É natural da serra da Estrela. O terceiro colega é algarvio. Preferem não dizer os nomes. Todos nutrem um especial carinho pelo periquito-de-colar. Anastácio revela que esta ave é “uma grande apreciadora das bagas do lódão, porque são doces e comestíveis, mesmo pelos humanos”. Refere-se aos frutos do lódão-bastardo, uma árvore comum nos espaços verdes da cidade. “No Jardim da Estrela, lembro-me de os papagaios verdes a fazerem ninhos nos buracos das árvores, mas aqui [no Jardim Mário Soares] vêm principalmente dormir nos eucaliptos. Gostam de árvores altas.”

Lígia Santos trabalha há muitos anos no Horto do Campo Grande, mesmo ali ao lado. Diz que os periquitos-de-colar “aparecem sempre ao final do dia nos eucaliptos em frente ao Horto. Eles são verdes e por isso não se vêem muito, mas ouvem-se bem. São barulhentos quando chegam”. Ruído é algo que não falta naquela zona movimentada da cidade. Além das muitas rodovias que se cruzam, os aviões passam a baixa altitude mesmo por cima de Alvalade e as conversas são periodicamente interrompidas pelo som ensurdecedor que produzem. As aves parecem não se incomodar.

Mais de 2000 em Lisboa

Às 10h20 de sexta-feira, o movimento em frente à Basílica da Estrela é intenso e frenético: um vaivém de autocarros, pessoas e automóveis. Entrar no Jardim da Estrela não permite de imediato a fuga ao bulício urbano. O movimento de pessoas continua frenético e, aos ruídos da cidade, soma-se um coro mais intenso: vem das aves, mas também dos gritos e gargalhadas que preenchem os campos de jogos. Numa das mesas junto ao quiosque da entrada, está Hany Alonso. O boné denuncia que passa grande parte do seu tempo fora de escritórios e gabinetes. Hany trabalha na Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), uma organização não governamental focada no estudo e na conservação desta classe de animais e dos seus habitats.

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Os periquitos-de-colar que se encontram em liberdade em Portugal têm um valor de mercado reduzido DESPITE STRAIGHT LINES/GettyImages

Filho de pai cubano, Hany nasceu em Madrid e veio para Portugal aos dois anos. Integra a SPEA como técnico de gestão de aves desde 2018, mas a sua ligação à ornitologia estabeleceu-se aquando da licenciatura em Biologia. Coordenou vários censos, entre os quais, o Censo Nacional de Aves Comuns e o mais recente Censo Nacional do Periquito-de-Colar, apresentado em 2022 e que incluiu uma componente de ciência cidadã.

“Aqui no Jardim da Estrela passam vários periquitos-de-colar. Muitas vezes vêm da Tapada das Necessidades, depois seguem para as Avenidas Novas e também para o Campo Grande. Lá é que há actualmente o maior dormitório comunal de Inverno desta espécie. Chegam a ser várias centenas”, conta. “Juntarem-se em dormitórios é uma forma de protecção. A espécie é muito social, há muitos vínculos entre os indivíduos, às vezes familiares. Nas alturas do ano em que estejam a reproduzir-se, podem ficar mais dispersos e ocupar dormitórios mais pequenos.”

“Os psitacídeos são uma família de aves bastante vocais”, prossegue Hany, “e têm a particularidade de também chamarem à atenção pelo seu aspecto. Por isso é que a iniciativa de envolver os cidadãos nos censos correu tão bem, porque as pessoas prestam atenção. Se tivessem um canto e aspecto idênticos aos das nossas aves autóctones, passavam mais despercebidos”.

De acordo com o censo, estima-se que existam até 2500 periquitos-de-colar em Portugal, 87% dos quais em Lisboa. “A vertente de ciência cidadã permitiu recolher muita informação”, relata Hany. “Encontrámos uma forma de cidadãos sem formação na área darem um contributo significativo e importante, que ao mesmo tempo fosse funcional e pudesse ser validado. Comunicar avistamentos da espécie e ajudar a encontrar os dormitórios foi fundamental, porque passaram a ser muito mais olhos a procurar e todas as localizações identificadas foram depois visitadas por especialistas.”

Se uma espécie ocorre fora da sua área de distribuição natural por acção do homem, é considerada exótica. No caso da classificação como invasora, já não é tão taxativo. A entidade responsável pela atribuição desse estatuto é, no nosso país, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e a espécie não consta da lista em Portugal continental (apesar de constar nos Açores, na Madeira e em Espanha, por exemplo).

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“A espécie adapta-se muito bem”, diz Hany Alonso ElsvanderGun/GettyImages

“O caso do periquito-de-colar é paradoxal. De facto, a espécie adapta-se muito bem, tem havido uma expansão grande e, nesse sentido, enquadra-se na classificação de espécie invasora”, explica Hany. “Obviamente, pode ter impacto noutras espécies, nomeadamente espécies que também nidifiquem em buracos (outras aves, morcegos...). A questão paradoxal é que a espécie tem mostrado incapacidade para sair das cidades ou revelado uma preferência por habitats urbanos e humanizados. Isto leva a que, mesmo podendo existir, o impacto noutras espécies seja muito limitado.”

A perspectiva dos criadores

João Santos é doutorado em Gestão de Empresas, docente no ensino superior e criador de psitacídeos desde 1998. Dedica-se principalmente a híbridos com mutações raras. “Neste momento tenho apenas 50 ou 60 Psittacula krameri, mas já tive mais de 200”, conta. Reconhece que o estabelecimento de aves exóticas no nosso país é um problema: “Reproduzem-se com muita facilidade e, apesar de não serem agressivos, é imprevisível prever como irão comportar-se se as populações aumentarem muito e houver escassez de alimento. Podem vir a ser uma ameaça para outras espécies.”

João Santos tem as aves registadas no ICNF e considera “muito improvável que criadores com a actividade legalizada sejam responsáveis por fugas ou libertação de aves exóticas. É preciso compreender que, além do gosto pela actividade, isto é também um negócio. Ninguém tem vantagens em deixar fugir aves valiosas”. No entanto, diz ser essencial que “haja mais controlo, restrições e, acima de tudo, fiscalização para garantir que a lei é cumprida, que todos os criadores reúnem condições adequadas ao bem-estar das aves e também para prevenir fugas” e dá o exemplo prático da obrigatoriedade de portas duplas nas instalações.

Vasco Coelho
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Os periquitos-de-colar que se encontram em liberdade em Portugal têm um valor de mercado reduzido (cerca de 15 euros por ave), mas as mutações que João já conseguiu obter em cativeiro podem atingir preços superiores a 15 mil euros. Tem conhecimento de uma arara vendida por 300 mil euros, já em 2023. “Há mutações que demoram 10 ou 12 anos a conseguir e implicam muito investimento”, explica João Santos, “mas acho muito bem que a faceta económica seja controlada. É um negócio e é importante que seja enquadrado legalmente em todas as suas vertentes”.

Hany Alonso faz uma distinção: “Em todas as espécies que são comercializadas e não são nativas, existe o risco de haver fugas de cativeiros. Obviamente, que há umas que podem ter um potencial maior de se estabelecerem em liberdade, como é o caso do periquito-de-colar, e outras que tendem a não conseguir estabelecer-se. Se calhar, essas são menos arriscadas.”

“Teria de haver um planeamento estratégico, para funcionar a longo termo. Essa é uma das questões que, pelo menos para mim, são fundamentais”, diz Hany. “Muitas vezes, esta conversa começa pelo fim, no recurso a medidas de controlo. Acho que é preciso ir muito antes disso e começar a falar sobre aquilo que se deve fazer ao nível da comercialização deste tipo de espécies. Porque hoje é esta, amanhã será outra. E, portanto, aquilo que tem de se fazer é um trabalho preventivo.” E concretiza: “É preciso identificar espécies em cativeiro que possam ser potencialmente mais arriscadas e trabalhar-se muito a esse nível. Mas está tudo por fazer.”

Texto editado por Ana Fernandes