Música dos Pink Floyd reconstituída através de ondas cerebrais

Estudo mostra que é possível gravar e traduzir ondas cerebrais para captar elementos musicais da fala – o ritmo, sotaque e a entoação. Resultados podem beneficiar pessoas com problemas de comunicação.

Foto
Roger Waters em espectáculo em Indianapolis (Indiana, EUA) em 2012: música dos Pink Floyd reconstituída a partir de ondas cerebrais de 29 doentes Joey Foley/Getty Images
Ouça este artigo
00:00
04:11

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

A rotina era sempre a mesma: os acordes de Another Brick in the Wall, dos Pink Floyd, enchiam a sala de cirurgia e os neurocientistas do Centro Médico de Albany, no estado de Nova Iorque, registavam diligentemente a actividade dos eléctrodos colocados no cérebro dos doentes submetidos à cirurgia para tratar a epilepsia. O objectivo era tentar captar a actividade eléctrica das regiões do cérebro sintonizadas com os atributos da música – o tom, o ritmo, a harmonia e as palavras – para perceber se seria possível reconstituir o que os pacientes estavam a ouvir.

Uma década mais tarde, depois de uma análise minuciosa dos dados dos 29 voluntários que foram incluídos no estudo e que ouviram cerca de três minutos da canção, os neurocientistas da Universidade da Califórnia em Berkeley (Estados Unidos) chegaram a uma resposta clara. Sim, foi mesmo possível reconstituir a música do álbum The Wall, de 1979, ao ouvir as ondas cerebrais destes pacientes.

Depois do registo, foi utilizada inteligência artificial para descodificar as gravações e codificar uma reprodução dos sons e das palavras. “Parece que alguém está a falar debaixo de água, mas esta foi apenas a nossa primeira tentativa”, disse Robert Knight, neurologista e professor de Psicologia da Universidade da Califórnia em Berkeley que dirigiu o estudo, em comunicado.

Na gravação, a frase all in all, it’s just another brick in the wall aparece de forma nítida. O ritmo da música dos Pink Floyd está intacto e, apesar de algumas palavras estarem deturpadas, continuam decifráveis. Esta foi a primeira vez que a comunidade científica conseguiu reconstituir uma música reconhecível a partir de gravações cerebrais.

“Outro tijolo”

A reconstituição mostra que é possível gravar e traduzir as ondas cerebrais para captar os elementos musicais da fala – o ritmo, o sotaque e a entoação – que, nos humanos, contêm um significado que as palavras sozinhas não possuem. O grupo de investigadores norte-americanos refere estes resultados num artigo publicado esta terça-feira na revista científica PLOS Biology, dizendo que acrescentaram “outro tijolo na parede da nossa compreensão do processamento de música no cérebro humano”.

Estas gravações de electroencefalografia intracraniana (iEEG) só podem ser feitas a partir da superfície do cérebro – o mais próximo possível dos centros auditivos – e podem beneficiar e muito as pessoas que têm problemas de comunicação, seja por causa de derrame ou de paralisia. Investigações anteriores já tinham chegado à conclusão de que a modelagem computacional poderia ser usada para descodificar e reconstituir a fala, mas ficava a faltar um modelo que incluísse elementos como tom, melodia, harmonia e ritmo, bem como diferentes regiões da rede de processamento de som do cérebro.

As interfaces cérebro-máquina utilizadas hoje para ajudar as pessoas que não conseguem falar conseguem descodificar palavras, mas as frases produzidas têm uma qualidade robótica semelhante ao software de discurso que Stephen Hawking usava.

“Neste momento, esta tecnologia é uma espécie de teclado para a mente. Não podem ler os pensamentos num teclado, precisamos de apertar os botões, o que dá origem a uma espécie de voz robótica. E com certeza há menos daquilo a que chamo ‘liberdade de expressão’”, diz o investigador principal deste estudo, Ludovic Bellier.

“São resultados maravilhosos”, refere ainda Robert Knight. “Uma das coisas mais importantes da música é que ela tem prosódia e conteúdo emocional. À medida que todo este campo de interfaces cérebro-máquina progride, temos mais formas de adicionar musicalidade a futuros implantes cerebrais para pessoas que precisam, pacientes com esclerose lateral amiotrófica (ELA) ou outro distúrbio neurológico ou de desenvolvimento incapacitante que comprometa a fala.”

À medida que as técnicas de gravação cerebral evoluem um dia poderá até ser possível, dizem os investigadores, recorrer a esta técnica sem necessidade de recorrer a uma cirurgia, usando, por exemplo, eléctrodos presos ao couro cabeludo. Actualmente, o EEG do couro cabeludo consegue medir a actividade cerebral para detectar uma letra individual num fluxo de letras, mas a abordagem demora pelo menos 20 segundos a identificar um único carácter, o que faz com que a comunicação seja trabalhosa e difícil.

“As técnicas não invasivas ainda não são exactas o suficiente. Temos esperança de que no futuro possamos, apenas com eléctrodos colocados fora do crânio, ler a actividade das regiões mais profundas do cérebro com uma boa qualidade de sinal. Mas estamos longe disso”, afirma Ludovic ​Bellier.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários