Podemos perder metade dos glaciares da Terra até 2100

Degelo vai dar origem a ecossistemas pós-glaciais que podem tornar-se um refúgio para espécies adaptadas ao frio. Estes habitats emergentes precisam de protecção, alerta estudo da Nature.

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Consoante o cenário de emissões de gases com efeito de estufa até 2100, podemos perder áreas glaciares equivalentes ao território do Nepal ou da Finlândia Reuters/NACHO LOPEZ (IPE/CSIC)
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A crise climática pode reduzir pela metade a área coberta por glaciares no planeta até 2100, exceptuando a região da Antárctida e da Gronelândia, indica um estudo publicado nesta quarta-feira na revista científica Nature. Esta diminuição das zonas geladas implica o surgimento de vastos ecossistemas pós-glaciais, intocados pela mão humana, que também precisam de protecção, alertam os autores.

“Estes ecossistemas pós-glaciais são algumas das últimas áreas selvagens intactas da Terra. Aquilo que poderá emergir do degelo, ao longo deste século, são áreas que sempre estiveram cobertas por glaciares durante a história do Homo sapiens. Estes ecossistemas emergentes vão ter um papel importante face à perda de biodiversidade e habitat, à escassez hídrica e à crise climática”, explica ao PÚBLICO Jean-Baptiste Bosson, primeiro autor do estudo.

Ecossistemas marinhos, terrestres ou de água doce substituirão extensas áreas hoje ocupadas por glaciares – espaços que tendemos a ver como inabitáveis. Por outras palavras, estamos diante da emergência de novos habitats, paisagens futuras com diferentes características, que precisam de ser mais bem entendidas e analisadas. Só assim será possível protegê-las nas décadas que se seguem – e esta ambição na área da conservação também motivou o estudo da Nature.

Numa tentativa de quantificar e prever estes futuros habitats, os cientistas recorreram ao Modelo Global de Evolução dos Glaciares para estimar o que acontecerá aos cerca de 650 mil quilómetros quadrados de glaciares que cobrem o planeta (à excepção dos mantos de gelo da Antárctida e da Gronelândia). As conclusões do estudo indicam que, consoante o cenário de emissões, a perda de área glacial pode variar entre 22% e 51% da extensão actual.

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O resultado do degelo em Belvédère e, ao fundo, o maciço do Monte Branco, em França Jean-baptiste Bosson/Asters

Consoante o cenário de emissões de gases com efeito de estufa – mais ou menos pessimista – até ao fim deste século, podemos perder áreas glaciais equivalentes ao território do Nepal (149 mil quilómetros quadrados) ou da Finlândia (339 mil quilómetros quadrados), respectivamente. O modelo usado indica que, desse total, 78% das regiões emergentes vão ser terrestres, 14% marinhas e 8% de água doce.

Até agora, argumentam os autores, os ecossistemas pós-glaciais permanecem pouco compreendidos e não têm merecido a devida atenção. Não havia até ao momento, refere o estudo, “uma análise espacial completa” capaz de quantificar ou prever a formação de ecossistemas pós-glaciais, “que será marcada por uma cascata de consequências ecológicas e sociais”.

“O estudo fornece pela primeira vez dados não só quantitativos globais e ordens de grandeza sobre a transição entre os glaciares e ecossistemas pós-glaciais, mas também os primeiros elementos para caracterizar a topografia e as condições ecológicas dos ecossistemas pós-glaciais”, refere Jean-Baptiste Bosson, que trabalha como investigador no Conservatório de Espaços Naturais da Alta Savóia (Asters, na sigla francófona), na França.

No artigo da Nature, os cientistas não só quantificam estes ecossistemas, como também analisam as suas particularidades e funções ecológicas. A secção final do artigo sugere ainda soluções para que esses habitats emergentes possam ser protegidos.

Uma das ambições do trabalho é contribuir, de alguma forma, para que os ecossistemas pós-glaciais possam começar a fazer parte da agenda global de conservação. Uma resolução recente das Nações Unidas sobre a preservação dos glaciares, por exemplo, sublinhava a importância de proteger estas grandes massas de gelo, mas, acredita Jean-Baptiste Bosson, deveria enfatizar também a salvaguarda dos ecossistemas que vão emergir do degelo.

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Novo lago glaciar em Bionnassay, na França Jean-baptiste Bosson/ Asters

Proteger e mitigar ao mesmo tempo

Uma das mensagens-chave do artigo é que é fundamental compreender e proteger estes novos ecossistemas pós-glaciais. O novo ângulo de investigação não significa, contudo, que o degelo substancial dos glaciares é inevitável e que, por isso, já não vale a pena investir na redução drástica de emissões para mitigar os efeitos da crise climática. O estudo e a protecção de habitats emergentes devem, isso sim, ser esforços paralelos à acção climática.

“É ainda possível, e fundamental, salvar a maior parte do gelo glacial da Terra, mas precisamos de acelerar a mitigação das mudanças climáticas e respeitar as promessas do Acordo de Paris”, afirma Jean-Baptiste Bosson, numa resposta enviada por email.

Matthias Huss, também co-autor do artigo, recorda ainda que a neutralidade carbónica não significa o fim imediato do processo de degelo, que, por inércia, deverá continuar durante um período mesmo que se envidem todos os esforços de redução de emissões.

“Mesmo que a taxa de degelo possa ser reduzida com zero emissões de CO2 nas próximas décadas, os glaciares em todo o mundo continuarão a recuar e, portanto, emergirá um novo ecossistema valioso que acabará por ser povoado por várias espécies”, afirma Matthias Huss, cientista do Instituto Federal Suíço para a Floresta, a Neve e a Investigação da Paisagem (WSL, na sigla em alemão) e no Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (ETHZ, idem).

Face a esta alteração das paisagens geladas, que pode variar consoante as emissões, os ecossistemas que vierem a surgir podem constituir um refúgio para vegetais e animais. Estes novos habitats podem, por exemplo, ser recolonizados por espécies adaptadas ao frio que, devido ao aquecimento nos locais de origem, foram obrigadas a migrar.

Limitações do estudo

As previsões apresentadas no estudo baseiam-se nas conclusões dos modelos climáticos mais recentes, mas, como é próprio das estimativas, não oferecem resultados exactos. Por um lado, existem incertezas no que toca à trajectória das alterações climáticas e, por outro, houve uma simplificação da resposta dos glaciares ao aquecimento global.

“Modelos em escala global são um desafio, uma vez que as fontes de dados geralmente são incertas e muitos processos precisam de ser simplificados. Assim, não podemos prever exactamente a data de surgimento e as características dos novos ecossistemas emergentes, mas fornecemos indicações que permitem avançar com estudos locais mais detalhados”, explica Matthias Huss, numa resposta por email.

Tanto a Gronelândia como a Antárctida foram excluídas do estudo. Isto porque, segundo o investigador suíço, estas duas massas de gelo respondem de maneira diferente das dos glaciares relativamente pequenos, localizados em regiões montanhosas. Dessa forma, os dados dessas duas importantes áreas geladas do planeta não se “encaixariam” no modelo e na abordagem escolhidos pelos autores.

“Além disso, novos ecossistemas são mais relevantes em glaciares de montanha, que sofrem alterações mais rapidamente e que, geralmente, estão localizados em regiões climatológicas menos adversas em comparação às massas de gelo [da Gronelândia e da Antárctida]”, esclarece Matthias Huss.

Num comentário, publicado na mesma edição da revista ciência Nature, o biólogo Nicolas Lecomte refere que estas e outras limitações só reforçam a urgência de estudarmos e compreendermos melhor o degelo e os ecossistemas pós-glaciais.

“O estudo de Bosson e colegas oferece um raro aviso de quão rápido e global será o degelo neste século. E as limitações do artigo servem apenas para fortalecer esta mensagem. [...] A vastidão das áreas geladas da Gronelândia e da Antárctida – quase metade do tamanho da África – vai provavelmente amplificar os impactos descritos pelos autores”, alerta o cientista do Departamento de Biologia da Universidade de Moncton, no Canadá.