Viagem ao incrível recife de Portugal no Algarve: um “jardim subaquático” com futuro

A Pedra do Valado é talvez o mais importante recife de Portugal continental. É um “jardim subaquático” e viveiro de muitas espécies. Agora, tornou-se na aposta de sustentabilidade de uma comunidade.

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Há um caminho de rochas do lado esquerdo da praia de Manuel Lourenço, em Albufeira, no Algarve. É para lá que nos leva Jorge Gonçalves, biólogo do Centro de Ciências do Mar (CCMar) da Universidade do Algarve (UAlg), que nos quer mostrar as poças de maré que existem ali. A meio do caminho, o biólogo pára e aponta para a linha de costa, em direcção a oeste. “Ali é a Senhora da Rocha, a seguir a Armação de Pêra”, diz Jorge Gonçalves. “Lá ao fundo fica o farol de Alfanzina. É o limite a oeste do parque marinho. As grutas são nas falésias mais altas”, acrescenta.

Para quem não conhece a região, esta é uma primeira indicação que permite situar o futuro Parque Natural Marinho do Recife do Algarve — Pedra do Valado em relação à linha costeira. Do Farol de Alfanzina até à Marina de Albufeira, que fica uns quilómetros a leste da praia Manuel Lourenço, o parque marinho estende-se cerca de dez quilómetros em direcção ao mar, completando uma área de 156 quilómetros quadrados. Naquela geografia marinha existe aquele que poderá ser o mais importante recife de Portugal continental, a Pedra do Valado, reconhecido pelos cientistas e vivido de perto pelos pescadores e mergulhadores daquela região.

“Fizemos aqui, de forma pioneira, estudos de mapeamento dos habitats na costa algarvia e chegámos à conclusão de que ali era a zona com maior biodiversidade marinha, não só do Algarve, mas talvez até da costa portuguesa”, tinha explicado Jorge Gonçalves, algumas horas antes, no laboratório da equipa de Pescas, Biodiversidade e Conservação, na UAlg, que o biólogo co-coordena.

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Novo parque marinho vai proteger um dos recifes mais importantes de Portugal continental.

Os estudos feitos pela UAlg alimentaram uma discussão que decorreu entre 2018 e 2021, que teve como epicentro geográfico a vila de Armação de Pêra, e que juntou os municípios de Silves, Lagoa e Albufeira, associações de pescadores, o sector do turismo, organizações não-governamentais, ambientalistas, reunindo cerca de 70 entidades para criar a Área Marinha Protegida de Interesse Comunitário (nome inicial do parque), e que teve na Fundação Oceano Azul um facilitador entre os vários interessados.

Em Maio de 2021, foi entregue ao Governo o dossiê para a classificação da área. Até 4 de Agosto, a classificação esteve em consulta pública no portal ConsultaLex. Segundo a proposta, a criação do parque servirá para “salvaguardar e recuperar de forma eficaz os valores naturais e a saúde dos ecossistemas”, “promover a pequena pesca das comunidades locais de forma sustentável” e “garantir a sustentabilidade das actividades marítimo-turísticas e recreativas”, entre vários outros objectivos. Ao todo, houve 160 comentários e 86 documentos submetidos, num processo coordenado pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).

Zona privilegiada

A Pedra do Valado “é um recife rochoso enorme”, segundo Jorge Gonçalves. “Há uma complexidade de habitats muito grande, como os bancos de algas calcárias e os jardins de coral. Depois temos espécies ameaçadas ali, o mero, o cavalo-marinho. Há 19 classificadas. É também um viveiro e uma maternidade para muitas espécies, nomeadamente de interesse comercial”, descreveu o biólogo.

As gorgónias no recife da Pedra do Valado Pedro Veiga/CCMar
As gorgónias no recife da Pedra do Valado Pedro Veiga/CCMar
As gorgónias no recife da Pedra do Valado Pedro Veiga/CCMar
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As gorgónias no recife da Pedra do Valado Pedro Veiga/CCMar

A crista do recife, situada a poucos quilómetros da costa, era a antiga linha de costa na última glaciação. Depois, o mar subiu, e aquele ambiente rochoso tornou-se um ecossistema marinho rico que pode ser visitado por quem faz mergulho a profundidades entre os 18 e os 25 metros. Segundo o Estudo de Valores Naturais promovido pela UAlg e a Fundação Oceano Azul, aquela região conta, ao todo, com 703 espécies de invertebrados, 111 espécies de peixes e 75 espécies de algas. Entre o total de 889 espécies, 45 são novas em Portugal e, destas, 12 “não são conhecidas em mais nenhum local”.

Há várias razões para haver tanta riqueza ali. “A primeira coisa é o complexo de habitats”, adiantou Jorge Gonçalves. Além do complexo rochoso, as algas calcárias e os jardins de gorgónias – os corais moles que crescem ali –, multiplicam os recantos para as espécies. As ervas marinhas, situadas em pequenas áreas junto à costa, constroem outro habitat rico.

Depois, há naquela região a junção das águas que vêm do mar Mediterrâneo com as águas do Atlântico. Ao mesmo tempo, o afloramento de águas frias profundas que atingem a superfície e que ocorre de norte a sul na costa ocidental, ainda atinge aquela região do Algarve, trazendo um fornecimento de nutrientes. “Todo este conjunto de habitats e fenómenos oceanográficos fazem com que aquela zona seja privilegiada”, resumiu o especialista.

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Henrique Lourenço

Nas poças de maré que se formam perto da praia de Manuel Lourenço, é possível ver alguma daquela biodiversidade. A erosão do mar escavou ao longo do tempo a rocha, formando redondéis de alguma profundidade que revelam parte da biodiversidade durante a maré baixa. “É uma zona boa para fazer educação ambiental. É uma zona de viveiros. Há espécies que só existem aqui”, reforça Jorge Gonçalves. Da rocha é possível observar pequenos camarões. Mas também há polvos e peixes como os cabozes, aponta o biólogo.

Infelizmente, boa parte da água está tomada pela Rugulopteryx okamurae, uma alga originária do Japão que tem invadido muitas praias do Algarve, e que torna difícil observar o movimento nas poças. “É muito difícil controlar a alga”, refere Jorge Gonçalves. A sua propagação poderá estar a ser facilitada pelas alterações climáticas, sugere o biólogo, que adverte para os riscos do aquecimento das águas marinhas.

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Jorge Gonçalves, biólogo da Universidade do Algarve Henrique Lourenço

“As alterações climáticas vão mudar a composição dos ecossistemas do parque. Esperamos que seja só uma alteração de espécies e não de função. Há espécies que realmente vão migrar, umas mais para Norte, outras em profundidade. Isso já está a acontecer. Mas normalmente são substituídas por outras e daí não haveria problema, a menos que essas espécies que migrem tenham uma função específica que as outras, que as substituem, não o façam. Aí, o ecossistema perde”, advertiu Jorge Gonçalves. “Obviamente que o parque poderá estar mais resiliente a essas alterações climáticas, por ter zonas mais fortes e com uma conservação mais apertada.”

Proibir para conservar, conservar para usar

Uma das formas de criar resiliência no parque marinho passará pela definição de um zonamento. Quem consultar a proposta de classificação ficará com uma ideia do tipo de conversações que existiram entre os vários interessados em questões importantes como a do zonamento. De uma forma geral, o que se prevê é que haja uma região na crista do recife de quatro quilómetros quadrados onde não será permitido qualquer tipo de actividade económica, turística e científica, ocorrendo apenas a monitorização do estado do recife.

Depois, haverá uma zona de protecção parcial, que rodeará a zona de protecção total, com mais de 20 quilómetros quadrados, ao longo da crista do recife. Aqui, será possível haver actividades turísticas e mergulho, desde que não ponham em causa os recifes, mas não poderá haver actividades extractivas como a pesca. Além desta, há três pequenas áreas junto à costa com pradarias de ervas marinhas onde não será permitido fundear barcos e bóias.

Haverá ainda uma protecção especial numa pequena porção de costa, mais ou menos entre a Galé e a praia do Castelo, onde as actividades extractivas como a apanha de espécies, a pesca comercial e a lúdica serão vedadas. “Trata-se de procurar proteger a zona entre marés e respectivas poças de maré e, como tal, um habitat que funciona como viveiro de espécies comerciais e de muitas espécies para as quais [as poças] são o seu único habitat”, lê-se no documento Estudos Sobre as Actividades Económicas, também disponível no portal. No resto do parque marinho, poderá ocorrer actividade piscatória tradicional, com barcos pequenos, ficando proibidas as técnicas de arrasto.

Quem trabalha na região tem consciência do impacto que estas limitações vão trazer para a sua actividade. “Em 80% da minha área de excelência fico proibido de lá ir”, afirma ao PÚBLICO, por telefone, Miguel Rodrigues, director técnico da Divespot Portugal, referindo-se ao mergulho submarino que faz profissionalmente ao recife. “É o preço a pagar para esta área vir a ter sucesso, na esperança de que o resto da área do recife recupere e permita que haja mais peixe brevemente.”

O empresário é licenciado em Biologia Marinha. Entretanto, tornou-se pescador tradicional e trabalha também com a actividade marítimo-turística, transportando de barco visitantes às grutas situadas por baixo das falésias e para fazer observação de cetáceos – actividades com enorme impacto na região, que em 2018 atraíram quase um milhão de visitantes àquela região. “Eu vivo e dependo do recife, praticamente todas as minhas actividades são aqui”, refere. “O que é lindo e maravilhoso é o fundo do mar. É dos melhores sítios de Portugal continental”, afirma, recordando os pargos, os nudibrânquios – “lesmas-do-mar lindíssimas” – os meros e os cavalos-marinhos, que “praticamente já não há”.

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Henrique Lourenço

Miguel Rodrigues descreve a existência de filas de barcos para a visita das grutas e diz encontrar com frequência lixo no fundo marinho, vindo do normal funcionamento das artes de pesca. No início do processo de discussão do parque, o empresário era presidente da Associação de Pescadores de Armação de Pêra e participou nas conversas. “As pessoas que vivem e trabalham aqui têm de proteger o recife, tiramos o nosso proveito e temos que preservar também”, afirma. Por isso, defende tanto a necessidade de se “salvaguardar a pesca local e artesanal”, mas também a criação de um “código de conduta ou regras” e a fiscalização das actividades.

Medidas compensatórias

No fundo, houve a consciência, por parte de uma comunidade, da necessidade de tornar as actividades daquela região sustentáveis, da pesca ao turismo, de modo a não estragar a galinha dos ovos de ouro que é o recife.

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“Quanto mais carga houver, mais se aumenta o risco do esgotamento dos recursos. Houve a necessidade de encontrar um equilíbrio para se conseguir uma perspectiva de sustentabilidade”, explica, por sua vez, Maxime Sousa Bispo, vereador da Câmara Municipal de Silves. Ao nível do município, “há aqui o reconhecimento de conservação e protecção da natureza como um elemento importante para o ordenamento do território”, diz ao PÚBLICO, por telefone.

Uma das características únicas que o vereador aponta foi a vontade da criação do parque ter nascido no seio da comunidade. “É um processo que nasce de baixo para cima”, avalia Maxime Sousa Bispo. “Por norma, estas reservas nascem de uma iniciativa governamental. Aqui foi ao contrário, não foi o Estado, foram estas entidades que tiveram esta iniciativa”, refere, acrescentando que cabe agora ao Governo dar o seguimento do projecto.

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Tiago Pitta e Cunha, director-executivo da Fundação Oceano Azul Joana Bourgard

Apesar de o ICNF aparecer à frente da gestão do parque marinho, a ideia é “estabelecer um modelo de co-gestão participada, adaptativa e eficiente”, lê-se no portal ConsultaLex. “É um modelo de co-gestão como futuro de governança, envolvendo os municípios, as comunidades de pesca local” entre outros, explica o vereador.

Para Tiago Pitta e Cunha, director executivo da Fundação Oceano Azul, este processo demonstra a escolha feita por uma região. “São eles que são as forças territoriais. Uma área de um parque como este vai incidir num território, vai qualificar essa região. Quem vai beneficiar em última análise e quem seria prejudicado se este parque não viesse a ser criado era a própria população dessa região do Algarve”, afirma ao PÚBLICO Tiago Pitta e Cunha, durante uma conversa em Lisboa, na sede da Fundação Oceano Azul.

O advogado e Prémio Pessoa em 2021 já teve oportunidade de fazer mergulho no recife e recomenda a experiência. “É um verdadeiro jardim subaquático”, confirma, recordando “a beleza das gorgónias de várias cores”, mas referindo também que viu algumas destas colónias de animais partidas e destruídas devido à falta de protecção.

Este é o século XXI, é o século da sustentabilidade ambiental, onde a economia só poderá ter sucesso se tiver o selo da sustentabilidade ambiental. O Algarve é uma região que desvalorizou muitíssimo o seu capital natural ao longo das últimas décadas”, sublinha. “Se há um lugar em Portugal que precisava de ter um parque natural marinho, era precisamente a região do Algarve.”

A Câmara Municipal de Silves quer que a sede do parque marinho seja na antiga Fortaleza de Armação de Pêra. “Há aqui um reconhecimento cultural da comunidade piscatória de Armação de Pêra”, diz Maxime Sousa Bispo. Um facto importante é a exigência de medidas compensatórias aos pescadores “justas e equitativas” para recompensar a perda que possa existir devido às limitações que o parque vai impor aos pescadores durante a primeira fase de execução, adiantou o vereador. Estas medidas são também uma “salvaguarda das tradições dos pescadores e da sua herança imaterial”, aponta o responsável, recordando que a comunidade piscatória também é um atractivo para quem visita a região.

O conhecimento dos pescadores

Depois da visita guiada por Jorge Gonçalves, viajámos até Armação de Pêra para nos encontrarmos com Manuel João Prudêncio, o actual presidente da Associação de Pescadores de Armação de Pêra (APAP). O dia está quente e a praia cheia de chapéus-de-sol, que voam quando vem uma surpreendente rajada de vento. Mas o responsável leva-nos para dentro da antiga lota, que fica na fronteira da praia, e hoje funciona apenas como interposto do pescado que chega dos barcos.

“Pesca-se polvo, choco, lulas, pargos, sargos, bicas, linguados, azevias, salmonetes”, enumera o antigo pescador. “Uma coisa é certa: já se vai pescando menos. Conjugam-se dois factores, a diminuição dos stocks e a diminuição da frota.”

Apesar de ter iniciado a presidência quando o processo da criação do parque já estava na fase final, Manuel João Prudêncio conta-nos o que se passou. “Participaram todos os pescadores aqui da zona: Armação de Pêra, Albufeira, Senhora da Rocha, Portimão, Quarteira”, confirma. Apesar de “alguns pescadores no período inicial poderem vir a ser prejudicados em termos de capturas, eles já sentiam a necessidade da existência de uma preservação em relação a este rochedo”, avança.

O responsável explica que a importância do recife está associada à riqueza da biodiversidade que lá existe e que os pescadores sempre tiveram a noção dessa riqueza, apesar de não terem tido instrumentos científicos para a medirem. “O pescador não vê o que está no fundo do mar, mas tem informações porque a rede traz vestígios”, explica. “Se a rede ficar presa, é porque há pedra. Se a rede trouxer determinadas algas, os pescadores sabem o que é que está lá no fundo”, exemplifica, acrescentando que, por causa desta riqueza, os peixes daquela região têm uma alimentação única que lhes dá “um paladar significativo e diferenciado”.

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Manuel João Prudêncio, presidente da Associação de Pescadores de Armação de Pêra Henrique Lourenço

Manuel João Prudêncio nasceu e foi criado em Armação de Pêra. Vem de uma família de pescadores e fala-nos da sua terra com amor. Ao longo da sua vida, teve várias profissões, entre as quais a de pescador. É uma “pessoa da praia”, o termo que na vila se usa para descrever os pescadores e todos aqueles que fazem da praia um modo de estar e de viver, alimentando uma cultura com séculos, que sempre se relacionou com o “rochedo”.

Para o presidente da associação de pescadores, é neste contexto que o parque marinho surge. Por isso, também defende que a sede do parque fique em Armação de Pêra, prolongando o valor daquela região: “Nem apenas o rochedo é importante, nem apenas a comunidade é importante, mas também as raízes são importantes, a parte histórica, a parte cultural são importantes. E nós podíamos juntar isto tudo e dar outra dignidade, outra projecção a Armação de Pêra, que não tem.”