O caril que a avó de Rui Silvestre trouxe de Goa está num menu com estrela Michelin

O chef do Vistas decidiu seguir um caminho muito mais pessoal na sua cozinha e, para isso, mergulhou nas suas raízes indianas e moçambicanas.

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No Vistas, Rui Silvestre apresenta o caril da família com carabineiro MATILDE FIESCHI
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Demorou algum tempo até Rui Silvestre decidir que, na sua cozinha, no Vistas (uma estrela Michelin, Vila Nova de Cacela, Algarve), iria assumir a história da sua vida. Foi com o tempo que se tornou cada vez mais claro que a sua identidade como cozinheiro passava por esses sabores que tanto o marcaram desde criança. “Fui ganhando coragem para fazer aquilo que realmente queria.”

E o menu que criou, e que agora serve no Vistas, fala-nos de Portugal mas também de um mundo muito mais vasto. “Os meus sabores de infância têm que ver com citrinos, com especiarias, com malaguetas, caril, açafrão, cardamomo”, diz Rui. A avó Arnalda nasceu em Goa e aos vinte e poucos anos foi viver para Moçambique, “como milhares de pessoas”. Depois, aconteceu o 25 de Abril, a independência das ex-colónias, e a vinda para Portugal.

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Rui Silvestre cresceu numa casa onde dominavam os sabores da Índia e de Moçambique MATILDE FIESCHI

A mãe de Rui nasceu em Moçambique e ele foi o primeiro a nascer já em Portugal – mas sempre rodeado pelos sabores dessa Goa distante. “Cresci numa família em que cada vez que havia um aniversário reuniam-se 40 ou 50 pessoas, e a receita do caril que tenho no restaurante é literalmente a receita da casa, que ainda hoje, todos os domingos, se continua a fazer.”

Na casa, viviam várias gerações, com os avós e até a bisavó, que Rui ainda conheceu bem. Lamenta só que a receita das chamuças que ela tinha nunca tenha passado para os mais novos. “Sabemos fazer o recheio, mas ela nunca explicou como fazia a massa.” Nessa altura não tinha ainda planos para ser cozinheiro, confessa (sonhava estudar Antropologia ou História), e foi já adolescente, quando nasceu o irmão, que começou a cozinhar “mais por obrigação, um frango frito, umas coisas assadas, que até nem saíam mal”.

No Vistas, serve o caril com carabineiro, mas em casa o que se faz é de frango ou de camarão. Tirando isso, os sabores estão todos lá. E, sendo o caril “o melhor símbolo da diáspora”, como diz Rui, por ter saído da Índia e viajado para praticamente todo o mundo, assumindo características próprias em cada lugar, a mudança da avó de Rui de Goa para Moçambique também enriqueceu o caril desta família.

“A cozinha moçambicana tem uma base indiana muito forte”, explica o chef do Vistas. “No caril que eu faço, o toque moçambicano é dado pelo achar de limão, que é um pouco picante, mas também muito aromático. Sem ele, o resto já não faz sentido.”

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O prato de caril tal como é apresentado no menu do Vistas MATILDE FIESCHI

O caril de carabineiro foi a sua primeira criação depois de ter tomado a decisão de seguir um caminho muito mais pessoal na sua cozinha, mas não foi fácil chegar ao que pretendia. “Há quatro anos que ando a trabalhar nele, já teve seis ou sete versões.”

Era um prato ao qual tinha uma grande ligação afectiva, e, exactamente por isso, sentia que ainda não tinha chegado à essência. “Demorei tempo até deixar tudo o que não era essencial. Não é o prato mais exuberante que já fiz, mas quem o prova sente a ligação emocional que eu tenho com ele.”

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O achar de limão é um dos elementos fundamentais do prato e marca a influência moçambicana MATILDE FIESCHI

As memórias das tradições indianas estão presentes no menu também no final, numa sobremesa. Se, diz Rui, “todas as crianças comem leite com bolacha Maria, eu bebia o leite, mas, em vez do chocolate, punha canela” – e é desse simples lanche infantil que veio a inspiração para o final de um menu com estrela Michelin.

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