Barcelos quis reduzir carros em favor das bicicletas, mas mensagem não passou
Autarquia avançou para construção de ciclovia. Comunicação sobre o projecto foi quase inexistente, resultando em descontentamento da população. Agora, a câmara vai recuar na extensão da rede.
Quem governa Barcelos (PSD) sinalizou, em Outubro passado, uma vontade de mudar a mobilidade na cidade ao avançar para a construção de uma rede ciclável com uma extensão de 14 quilómetros que atravessasse alguns dos principais pontos de geração de tráfego automóvel. Mas numa cidade em que o peso do carro nas deslocações diárias aumentou quase 9% em dez anos, a contestação não demorou a surgir. A câmara cedeu e, apesar de ainda restarem dois meses para a obra estar finalizada, vai recuar na extensão da rede, estabelecendo, contudo, uma meta ambiciosa: retirar 10 a 15% dos automóveis do centro da cidade.
O projecto propunha a execução de uma ciclovia circular que atravessasse ruas e avenidas nevrálgicas da cidade, em pontos como escolas secundárias e o Instituto Politécnico do Cávado e Ave (IPCA), a estação ferroviária, a envolvente do edifício câmara municipal e do Castelo (Paço dos Duques de Barcelos), e várias zonas de comércio e lazer. A morfologia da rede consistia em implementar vias cicláveis, ao nível da cota da estrada, com troços segregados e partilhados.
O início das obras arrancou junto a uma avenida com uma extensão de mais de um quilómetro, que suprimiu o norte do território a duas escolas e, em diante, ao centro do comércio e lazer da cidade. Logo aí se levantaram as vozes de descontentamento. As manchetes do Barcelos Popular, o único jornal da cidade, fez manchetes como “Nova ciclovia vai reduzir drasticamente o estacionamento”, e deu eco à revolta da Associação Comercial e Industrial de Barcelos (ACIB), que, em Janeiro passado, pediu a suspensão da rede ciclável, invocando efeitos nefastos para o comércio local, ou de um antigo vereador do urbanismo que garantira que as ciclovias “nunca” seriam usadas, justificando que Barcelos não é Aveiro ou Copenhaga.
A origem das queixas pode explicar-se pela ausência de comunicação sobre o projecto: foi desenhado pelo anterior executivo, liderado pelo PS, e tinha associado fundos comunitários, que forçaram a rapidez na execução. O actual executivo, liderado por Mário Constantino, assinala ao PÚBLICO que, quando tomou posse, o concurso público “já tinha sido lançado” e o Tribunal de Contas “já havia dado luz verde” ao projecto. Avançou para a obra quase por obrigação, é certo, mas também porque a câmara entendia que “os modos suaves de mobilidade são cada vez mais os adequados e a filosofia que subjaz a este projecto está correcta: dar primazia aos peões, depois às bicicletas, depois aos transportes públicos, e só, em último caso, aos veículos motorizados”. Acontece que a mensagem não chegou aos munícipes.
Teria sido necessário, aponta ao PÚBLICO o professor e investigador da Universidade de Aveiro (UA), José Carlos Mota, comunicar mais para provar os efeitos positivos de pedalar e os impactos negativos do uso excessivo do carro. “Todas as mudanças geram reacções e as negativas estão associadas à perda de privilégio. Vivemos em cidades em que o privilégio pela utilização de automóveis é de tal modo excessivo que qualquer pequena mudança é vista como um risco. Os comerciantes entendem que há um risco de perda de negócio, os automobilistas defendem que há um risco de perda de comodidade e de condições de circulação, e era preciso explicar que a rede ciclável contribui para um espaço público mais atractivo, que se traduz numa mudança para a saúde com a redução do sedentarismo”.
“Há clientes que dão três voltas, não arranjam estacionamento e vão embora”
O peso do automóvel nas deslocações diárias no país aumentou em dez anos e Barcelos, cidade de média dimensão com 116 mil habitantes, 26 mil dos quais residentes nas freguesias urbanas, não foi excepção: de acordo com os Censos, a utilização do carro como meio de transporte preferencial nas deslocações de trabalho e escola na cidade minhota passou de 43 mil, em 2011, para 47 mil, em 2021.
Sérgio Neiva, proprietário de uma loja de artigos desportivos no centro histórico da cidade, por onde parte a rede ciclável iria passar, dá eco aos dados, através da ironia. “Há clientes que dão três voltas, não arranjam estacionamento para o carro em frente à loja e vão-se embora. E o que eu lhes digo é que o ideal é porem o carro cá dentro”, diz ao PÚBLICO. O comerciante, de 36 anos, vive a um quilómetro de distância da sua loja e mesmo assim há quem o questione sobre por que razão não se move de automóvel. “Eu venho a pé todos os dias para o trabalho e muita gente me pergunta porque é que eu não uso o carro. Até me dizem: e quando está chuva, como fazes? Eu respondo-lhes que existem guarda-chuvas”, graceja.
Embora não esteja contra a rede ciclável, que está a dois meses de ficar concluída, diz que há troços onde “as coisas não fazem sentido”. Fala sobre os separadores de plástico nas vias segregadas, que separam a estrada onde o automóvel se move dos meios de deslocação suave, e da pintura a vermelho – nas redes sociais há quem a denomine como passadeira vermelha -, que se encontra no eixo das vias partilhadas e marca por onde se deve mover o utilizador de bicicleta.
José Carlos Mota, embora enalteça “o sinal de mudança” que a autarquia quer dar com a rede ciclável, reconhece que a marcação a vermelho “não é um bom exemplo” porque uma “via ambígua não cumpre plenamente o seu objectivo”. O investigador recomenda a aplicação de “acções de urbanismo táctico”, que recorrem na mesma à marcação no chão, mas com o objectivo de “dar um efeito de redução da dimensão da via que possa induzir o condutor a circular mais devagar”. É que a dimensão da via, quando cria uma “percepção de linearidade, de vias muito largas e direitas”, contribui para o aumento da velocidade do automóvel e para a insegurança do ciclista.
Se as acções de urbanismo táctico constassem do projecto original, a ciclovia de Barcelos, por se inserir na urbe de uma cidade de média dimensão, até poderia constituir um exemplo “inovador” no país. Isso e a ligação directa entre os vários troços da rede ciclável. “Se a rede fosse contínua e ligasse pontos de origem e destino relevantes seria um exemplo de bom desenho de infra-estrutura. Mas não sendo contínua significa que o utilizador de bicicleta não sente clareza no percurso e aumenta a percepção de risco, não convencendo os utilizadores a usar a infra-estrutura”.
Reduzir o número de automóveis entre 10 e 15%
Para Mário Constantino, o projecto, quando finalizar, vai acolher receptividade junto da população e aponta a um desígnio ambicioso: reduzir, entre 10 e 15% o número de veículos a circular no centro da cidade, “não só através do uso da bicicleta ou da trotinete, mas também com o reforço dos transportes públicos”. Mas o certo é que apesar da meta estabelecida e de considerar que a ciclovia é “fazer cidade”, por configurar um “motor de mudança que tornará a cidade mais limpa”, a extensão da rede ciclável vai passar de 14,3 para 9 quilómetros, e o valor do projecto passou de 4,6 para 3,4 milhões de euros. Nos troços de 5,3 quilómetros por onde a ciclovia não irá passar encontram-se duas escolas secundárias, a envolvente à câmara municipal e ao castelo, e duas das principais avenidas, uma das quais com ligação directa e em linha recta à estação ferroviária.
O autarca social-democrata garante que o recuo não se deve aos laivos de insatisfação dos seus eleitores, e sim porque as zonas em causa serão integradas “em projectos amplos de recuperação de vias e passeios”, mas admite que “quando se avança para um projecto destes, com este impacto, é preciso acautelar, em termos estratégicos, a questão do estacionamento e da compatibilização com os transportes urbanos, o que não aconteceu”.
Mário Constantino assinala que a câmara está a “identificar seis zonas periféricas para implementar parques de estacionamento” e a trabalhar para “aumentar a frequência dos transportes públicos urbanos”. As duas medidas juntas contribuirão para “que quem venha para Barcelos deixe o automóvel fora do perímetro urbano e use o transporte público”.
José Carlos Mota deixa mais recomendações: fiscalizar-se o estacionamento – em Barcelos, apesar da existência de parquímetros, o estacionamento não é controlado -, assegurarem-se locais para parquear bicicletas, e trabalhar proximamente com os “aliados da mudança”: instituições, escolas, comunidade médica, grandes empregadores, e a própria câmara municipal, porque “são esses que alimentam muitas vezes a utilização excessiva de automóvel”. Sobre isto, Mário Constantino promete, mal a rede esteja concluída, a promoção de actividades junto das escolas, incentivar os trabalhadores dos espaços camarários a pedalarem, e disponibilizar, em vários espaços da urbe, entre 300 e 500 bicicletas.
Sérgio, que tem uma filha de 3 anos, vai “fomentar o uso da bicicleta” à sua primogénita, mas só quando a segurança das ciclovias estiver assegurada. “Conhecendo a mentalidade dos automobilistas questiono-me se se vai respeitar a segurança de quem anda de bicicleta”.