Jean-Louis Cohen não morreu

Com um sentido crítico ímpar, Cohen passou a vida a desmontar algumas das falsas ideias claras em que se tem baseado a historiografia ocidental.

Foto
Jean-Louis Cohen comissariou (com Vanessa Grossman) a exposição Paulo Mendes da Rocha: Geografias Construídas na Casa da Arquitectura NELSON GARRIDO
Ouça este artigo
00:00
03:45

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Jean-Louis Cohen não era apenas um dos mais relevantes historiadores de arquitectura da contemporaneidade. Era muito mais do que isso. Dado o seu carácter ecléctico, era o historiador de arquitectura da própria contemporaneidade. Deixou-nos esta segunda-feira, de modo inesperado.

Jean-Louis foi criado durante a guerra fria em Paris, entre o retrato de Einstein e Estaline, no seio de uma família de cientistas de esquerda. Ainda que aparentemente tenha escolhido uma área de acção distinta da dos seus progenitores, a Arquitectura, a verdade é que estes terão marcado de forma indelével o seu futuro. É disso sintomático o modo rigoroso como mais tarde desempenhou a sua acção como historiador de Arquitectura, mas também como manteve um ideário heterodoxo de esquerda, que o acompanhou durante toda uma vida.

Formou-se em Paris, numa época onde era possível, num raio de 500 metros, assistir a uma conferência do psicanalista Jacques Lacan, do filósofo Michel Foucault ou do escritor Roland Barthes. Mas terão sido as aulas de Jean Prouvé, afinal um metalúrgico e arquitecto autodidacta, que lhe terão permitido compreender que a Arquitectura é, sobretudo, uma actividade de acção, de construção. Começou nessa altura a viajar. Primeiro, para visitar obras de arquitectura, mais tarde também para as revelar ao mundo (uma acção que nunca abandonou e que chegou a tornar-se frenética). Confessava-se feliz, nos últimos anos, por conseguir concentrar as suas aulas na Universidade de Nova Iorque nos primeiros dias da semana, para que pudesse ficar, durante os restantes, livre para viajar pelo mundo fora – entre as suas inúmeras actividades académicas, editoriais, curatoriais e até familiares. Para ele, o dia não tinha vinte e quatro horas, mas vinte e oito; e, ainda assim (queixava-se), não lhe chegavam.

Com um sentido crítico ímpar, Cohen passou a vida a desmontar algumas das falsas ideias claras em que se tem baseado a historiografia ocidental. Organizou algumas das mais extraordinárias exposições de arquitectura do século XXI, como Architecture in Uniform: Designing and Building for the Second World War (2011), Le Corbusier: Na Atlas of Modern Landscapes (2013), Modernity: Promise or Menace? (2014), ou a mais recente Building a new New World: Americanizsm in Russian Architecture (2020).

Cohen dedicou-se, nos últimos anos, a um trabalho único (e que fica infelizmente por terminar): o da publicação do catalogue raisonné dos desenhos de Frank Gehry. Mas Cohen foi, acima de tudo, uma inspiração para os jovens investigadores, que encontram na sua enorme curiosidade, inteligência e perspicácia uma fonte de inspiração inesgotável.

No último ano, tivemos a sorte de tê-lo em Portugal em diversas circunstâncias. Participou, em Novembro passado, num debate sobre o construtivismo russo no âmbito da exposição Flashback/Carrilho da Graça; inaugurou, em Maio passado, uma excepcional exposição sobre a obra do arquitecto brasileiro Paulo Mendes da Rocha na Casa da Arquitectura e, nesse mesmo mês, terá dado uma das suas últimas conferências, sobre a obra de Frank Gehry, no âmbito do Doutoramento em Arquitectura Contemporânea da Universidade Autónoma de Lisboa. Ainda assim, foram muitos, os projectos que entre nós ficaram por concretizar.

Jean-Louis Cohen não poderia apenas envelhecer o que teimava em não suceder e perecer. Tinha de nos deixar assim, de rompante, boquiabertos, confusos. Eu perdi uma das minhas grandes referências, um interlocutor acutilante, um amigo generoso, e temo que só o tempo me poderá ir mostrando a verdadeira dimensão do desastre. Mas estou certa de que nos resta ir respondendo a todos os desafios procurando, ainda que como eternos aprendizes, plagiar a sua enorme bravura e, sobretudo, a sua imensa bondade.

Afinal, e tal como proclamava o arquitecto franco-suíço Le Corbusier, tema de investigação que começou por nos unir, "il n’y a pas de mort pour les oeuvres de l’esprit".

Sugerir correcção
Ler 2 comentários