“Parece Sevilha e a Andaluzia com a siesta.” Os segredos em Vale de Santarém para lidar com 46,4 graus

Os habitantes da vila usam os segredos de décadas para lidar com o calor recorde. “Morreram sete canários ao meu sogro”, contam-nos. Alguns poços secaram.

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A temperatura mais elevada registada este ano em Portugal foi sentida em Vale de Santarém, no Ribatejo NFS Nuno Ferreira Santos
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“Estamos habituados ao sol forte e ao trabalho no campo, na lezíria do Tejo, nas plantações do tomate, quando a apanha ainda era feita à mão e com apenas alguns tractores”, diz Francisco Sacramento, de 65 anos, enquanto a clientela não se aglomera ao balcão do seu café, espaço que no passado era uma adega. Vale de Santarém, onde os termómetros atingiram o valor recorde de 46,4 graus Celsius esta segunda-feira, integra uma região agrícola em que as vinhas e as plantações de tomate e trigo criam telas de perder de vista durante o Verão.

Até “à hora da bica”, ou seja, do almoço, as pessoas tratam dos recados, sobretudo nos correios e no centro de saúde, vão ao café e ao restaurante da vila e, só depois, recolhem a casa, descreve o ribatejano ao PÚBLICO.

“O vale depois dessa hora parece Sevilha e a Andaluzia com a siesta, as pessoas ficam por casa com as ventoinhas e o ar condicionado ligados. Não se costuma ver gente na rua durante a tarde”, garante. E o calor de segunda-feira não reduziu o ritmo da vida em Vale de Santarém? “Nada”, respondeu, com um sorriso tranquilo. “Quer dizer” – corrigiu, olhando para a esposa – “quase nada, morreram sete canários do meu sogro.”

A única diferença notada por Francisco Sacramento foi a ausência da nortada proveniente do rio Tejo que atenua a sensação de calor. Por isso, acrescenta, na segunda-feira, o vale foi coberto por uma “estufa” térmica, um fenómeno cada vez “mais recorrente” e que torna as noites “difíceis”, uma vez que as fachadas das moradias, ainda que pintadas de branco, não são capazes de isolar o interior de tanto calor acumulado.

Francisco Sacramento, proprietário de um café em Vale de Santarém, descreveu ao PÚBLICO o dia-a-dia na vila ribatejana Nuno Ferreira Santos
Dados dos Censos de 2021 indicam que a vila de Vale de Santarém tem 2755 habitantes, o valor mais baixo desde 1970 Nuno Ferreira Santos
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Francisco Sacramento, proprietário de um café em Vale de Santarém, descreveu ao PÚBLICO o dia-a-dia na vila ribatejana Nuno Ferreira Santos

Aproveitar o fresco da alvorada para cuidar da horta

Para pôr a render as horas em que o Verão ribatejano ainda dá tréguas, Domingues começa o labor agrícola pelas seis da manhã. Aos 74 anos, e orgulhosa dos seus “invejáveis” pimentos amarelos, conta ao PÚBLICO que se dedica à horta até às 11h30, onde também se entretém a cuidar do alho francês e dos tomates.

“Depois do almoço, estendo-me um pouco no sofá, ao fresco”, acrescenta Domingues, que, na companhia do marido, estava de passagem pelo pólo da Unidade de Saúde Familiar (USF) de Santarém.

Domingues, de 74 anos, começa o trabalho agrícola pelas seis da manhã para aproveitar as horas de menor calor Nuno Ferreira Santos
Domingues, utente do centro de saúde na reportagem no Vale de Santarém, onde foi registada a temperatura mais alta em Portugal em 2023 Nuno Ferreira Santos
O centro de saúde em Vale de Santarém é um polo da USF de Santarém Nuno Ferreira Santos
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Domingues, de 74 anos, começa o trabalho agrícola pelas seis da manhã para aproveitar as horas de menor calor Nuno Ferreira Santos

A população natural da vila, maioritariamente idosa, requer cuidados redobrados quanto à hidratação “fundamental”, protecção solar e acompanhamento de doenças crónicas nesta fase do ano. Para Ana Calado, a médica que visita a USF dois dias por semana, o hábito dos populares quanto ao calor não diminuiu os perigos relacionados com a exposição solar e esforço físico nas horas de maior calor, entre as 11h e as 17h.

Por isso, além do litro e meio de água, Ana Calado sugere a ingestão de sumos naturais de fruta, como de melancia ou melão, de gelatinas sem adição de açúcares, ou de sopa fria. O açúcar, produtos processados e o álcool devem ser “riscados” da alimentação, acrescenta.

“A hidratação por si ajuda ao bem-estar e restabelece a tensão arterial. O facto de estar num lugar fresco também, porque o calor provoca a dilatação dos vasos sanguíneos, que por sua vez promove a descida da tensão arterial”, explica Ana Calado.

Ainda assim, reconhece, os cuidados prestados por indisposições quanto ao aumento da temperatura são mínimos ou inexistentes, uma vez que as pessoas convivem há décadas com Verões escaldantes.

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Ana Calado, à esquerda, e a enfermeira Dina, à direita, são a voz da experiência no polo da USF Santarém Nuno Ferreira Santos

Praia fluvial é o destino ideal para refrescar

Antes de recolherem às moradias, os habitantes de Vale de Santarém refrescam-se na Praia Fluvial da Valada, já no concelho de Cartaxo. A viagem, cerca de 20 minutos, inicia-se ainda na zona agrícola da Charneca, mais acidentada e árida – mas com uva de melhor qualidade –, e estende-se até às plantações já incluídas na região da lezíria do Tejo, de terras férteis, em resultado da proximidade do Tejo. São telas que conjugam o vermelho dos tomates, o verde das vinhas e o amarelo do trigo em centenas de hectares que se dissipam na linha do horizonte.

No trajecto descrito em pormenor por Francisco Sacramento, o alcatrão é fustigado pelos camiões TIR que transportam toneladas de tomates, colhidos, sobretudo, por imigrantes chegados do Médio Oriente. “A vila é, cada vez mais, multicultural”, sublinha o filho da vila ribatejana.

À porta da Igreja de Valada, quem vai a banhos na parte pública da praia fluvial garante que a temperatura da água é “fantástica”, sobretudo quando o termómetro atinge temperaturas como aquelas registadas na segunda-feira. “Só se estava bem dentro da água, uma tarde espetcacular”, descreve uma banhista, natural do Cartaxo.

As plantações de tomates são predominantes entre o Cartaxo e Vale de Santarém Nuno Ferreira Santos
As plantações de tomates são predominantes entre o Cartaxo e Vale de Santarém Nuno Ferreira Santos
As plantações de tomates são predominantes entre o Cartaxo e Vale de Santarém Nuno Ferreira Santos
A Praia Fluvial da Valada é um dos destinos preferidos entre Vale de Santarém e Cartaxo Nuno Ferreira Santos
A Praia Fluvial da Valada é um dos destinos preferidos entre Vale de Santarém e Cartaxo Nuno Ferreira Santos
A Praia Fluvial da Valada é um dos destinos preferidos entre Vale de Santarém e Cartaxo Nuno Ferreira Santos
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As plantações de tomates são predominantes entre o Cartaxo e Vale de Santarém Nuno Ferreira Santos

Regresso da nortada estabiliza as temperaturas

Pelas 14h, restavam nas ruas de Vale de Santarém alguns populares, que, munidos de dezenas de garrafões, aproveitavam uma das fontes da vila para armazenar água. “O calor fez os poços secarem, é determinante para salvar as minhas produções de mamão, papaia, pêra e laranja”, comenta um popular, apressado. Outros, numa fonte mais ao fundo, ignoravam o sinal de “água não controlada” e aproveitavam para combater os 34ºC que já se faziam sentir.

Os habitantes que ainda não tinham recolhido às respectivas casas estavam reunidos no Don Tacho, o principal restaurante do pacato vale. Os mais velhos, mais corajosos, permaneciam na esplanada. A maioria, contudo, debatia futebol, política e saúde na sala de entrada, onde o ar condicionado convidava a ficar. Ao fundo continuava a ecoar o som de tachos e panelas, entre pedidos e contas. Nesta casa, especialista em secretos de porco preto e entrecosto, os 46,4 graus Celsius representam “só mais um dia de muito calor”, diz a gerente, Catarina Gonçalves.

Catarina Gonçalves, há 17 anos gerente do Don Tacho, está habituada ao calor de Vale de Santarém Nuno Ferreira Santos
Vale de Santarém, no Ribatejo, registou esta segunda-feira a temperatura mais elevada em Portugal este ano Nuno Ferreira Santos
Vale de Santarém, no Ribatejo, registou esta segunda-feira a temperatura mais elevada em Portugal este ano Nuno Ferreira Santos
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Catarina Gonçalves, há 17 anos gerente do Don Tacho, está habituada ao calor de Vale de Santarém Nuno Ferreira Santos

De facto, o fenómeno registado na segunda-feira foi “pontual”, segundo explicou ao PÚBLICO a meteorologista do IPMA Cristina Simões. Além disso, o valor esteve próximo da previsão dos modelos utilizados pelo IPMA, que indicavam uma temperatura máxima até 44 graus Celsius no arranque da semana no Ribatejo e Alentejo.

A temperatura elevada resultou da prevalência e intensidade dos ventos chegados do interior espanhol, que transportam uma “massa de ar quente e seco”, e que enfraqueceram e relegaram a nortada para a faixa costeira do território.

Numa altura em que as temperaturas altas continuam a gerar preocupação quanto ao risco de incêndio, sobretudo na região do Algarve, os próximos dias vão devolver o Alentejo e Ribatejo ao que é “normal” para Agosto. Em Santarém, as temperaturas máximas vão estabilizar entre os 33 e os 30 graus Celsius entre sábado e o final da próxima semana. Isso é resultado do regresso da nortada e dos ventos provenientes do oceano Atlântico, em direcção ao continente europeu, esclareceu a meteorologista. Por isso, nos próximos dias não se prevê que os termómetros se voltem a aproximar dos 47,3 registados na Amareleja (Beja) em Agosto de 2003.