Tornar a JMJ mais sustentável? Uma tarefa “titânica”
O impacto ambiental da JMJ traduz-se esmagadoramente na pegada carbónica das viagens. A nível local houve um esforço visível para mitigar a pressão sobre Lisboa — e sem greenwashing.
Enquanto caminhamos, Antonio Garrido vai recolhendo o (pouco) lixo que vai encontrando no chão, perto do enorme palco montado no Parque Eduardo VII para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ). A sua equipa da área da sustentabilidade, com cerca de 100 pessoas, já tinha passado os dias anteriores a cuidar do jardim do parque e preparava-se para dar apoio aos funcionários da higiene urbana nos dias de programação no Parque Tejo, no sábado e domingo.
“Uma tarefa titânica”, diz entre risos o coordenador para a área da sustentabilidade do Gabinete de Diálogo e Proximidade da JMJ, para descrever o esforço para reduzir o impacto ambiental do evento. Com mais de um milhão de peregrinos, entre pessoas inscritas e não inscritas, a factura da pegada ecológica paga-se em toneladas de lixo, pressão sobre os consumo de água e outros recursos e também sobre os serviços da cidade. E, claro, as próprias viagens de centenas de milhares de peregrinos de todo o mundo até ao epicentro do encontro convocado pelo Papa Francisco — o chefe da Igreja Católica que, ao longo de todo o pontificado, pôs a tónica nas preocupações ambientais como parte intrínseca da fé cristã.
“Laudato si’: Como o Papa Francisco nos convida, vamos cuidar da casa comum. Leva todo o lixo e recicla-o”. A notificação da app Lisboa 2023 foi uma constante no final de cada um dos principais momentos do maior encontro católico do mundo. Mas o esforço da organização foi muito mais longe.
Carmo Diniz, coordenadora do Gabinete de Diálogo e Proximidade da JMJ, destaca o Manual de Boas Práticas para uma Jornada Sustentável, com recomendações em várias áreas no sentido de procurar mais eficiência e organização, mas também uma cultura de ética e transparência, assim como benefícios para a sociedade. Entre as acções de mitigação estão o “grande desafio da plantação mundial de árvores”, com quase 18 mil árvores plantadas até ao início da JMJ, e que se estenderá até Agosto de 2024, explicou Carmo Diniz no primeiro dia do evento.
Saindo do contexto local, há outro incontornável elefante na sala: “a principal pegada ambiental é com certeza a pegada carbónica por causa das viagens”, descreve ao Azul Francisco Ferreira, da associação ambientalista Zero. A associação reuniu-se com a organização da JMJ há poucos meses e a percepção do dirigente é que “genuinamente pareceu que tinham preocupações do ponto de vista do impacto ambiental da iniciativa”, incluindo a equipa dedicada a essa avaliação.
No final das contas, contudo, é pouco provável que se consiga chegar a uma avaliação final, sem saber ao certo como viajaram os peregrinos, e em alguns casos sem saber sequer de onde vieram os que não estavam registados. “Há uma incerteza muito grande em relação aos cálculos que podem ser feitos.”
De boas intenções está o inferno cheio?
Há várias componentes da pegada ecológica que podem ser mitigadas, como as deslocações dentro de Lisboa, a alimentação e o cuidado na gestão de resíduos. A aplicação da JMJ procurou dar uma ajuda, convidando cada peregrino a calcular a sua pegada carbónica. “Qual é a tua pegada? Já experimentaste a Calculadora da Pegada de Carbono na app? Do que estás à espera? Encontra-a no teu perfil”, lia-se numa das notificações que chegavam pela aplicação oficial.
Algumas recomendações até incomodaram outras entidades, como a Confederação de Agricultores de Portugal (CAP), que condenou o “apelo ao vegetarianismo no Manual do Peregrino”, considerando exagerado o apelo à redução do consumo de carne para limitar a pegada ecológica (uma recomendação que está, na realidade, em linha com a evidência científica).
Na componente das infra-estruturas, nomeadamente a adaptação dos espaços do Parque Eduardo VII, do Parque Tejo e Algés, existe “uma pegada que não conseguimos perceber se está ou não a ser quantificada”, alerta Francisco Ferreira. Falta divulgar, por exemplo, pelas autarquias ou prestadores de serviços, uma “avaliação detalhada sobre gastos energéticos e emissões relacionados com as obras”.
Contudo, por melhores que sejam as intenções — com benefícios mais visíveis a nível da pressão sobre a cidade —, “a parte do carbono é a que vai ter mais peso” na pegada ambiental. As lacunas de Portugal em termos ferroviários também não ajudaram, não sendo uma opção para as viagens internacionais, pelo que avião, autocarro ou carro próprio foram os meios mais viáveis para chegar ao país.
Fazer uma avaliação completa dos aspectos de sustentabilidade da jornada, descreve Francisco Ferreira, “é capaz de vir a ser complicado”. Mas para o dirigente da Zero, há um aspecto positivo em termos da comunicação da JMJ sobre as questões de sustentabilidade: a percepção de que não há greenwashing. Há um esforço visível de integrar essa componente na organização e comunicar aos peregrinos, mas também um reconhecimento de que esse esforço tem as suas limitações.
“Nunca houve uma intenção de esconder esse impacto”, por exemplo, através das alegações (muitas vezes enganosas) que já se tornaram habituais noutros eventos de que as emissões serão compensadas ou que o evento tentará ser neutro em carbono. “Isso, ao contrário do que pode parecer, é mais honesto e sério do que fazer essas alegações que acabam por não se traduzir em nada na prática”, nota Francisco Ferreira.
O que falta fazer, contudo, é “conhecer-se mais o esforço que foi feito”, por exemplo, do ponto de vista do uso de materiais ou de eficiência energética. “Talvez tenha sido incorporado, mas não foi explicado.”
Laudato si’
A questão do ambiente e da sustentabilidade está presente na JMJ há vários anos, também por razões doutrinárias. Antonio Garrido, que coordena a equipa de sustentabilidade, explica que se começou a trabalhar na questão da “ecologia integral” desde a JMJ no Rio de Janeiro, em 2013 (a primeira liderada pelo Papa Francisco, mas preparada por Bento XVI), mas apenas em Lisboa é que “passou a ser um dos pilares” da Jornada. O jovem espanhol é também membro do Movimento Laudato Si’, criado em Janeiro de 2015 ainda sob o nome Movimento Católico Mundial pelo Clima, ainda antes da encíclica papal sobre o “cuidado da casa comum”.
A Laudato si’ foi, para muitos (católicos e não só), uma pedrada no charco. “Foi oportuno e corajoso, mas também desafiante, esta mensagem do Papa em 2015. E não podia ter calhado numa altura melhor.” Francisco Ferreira, da Zero, refere-se ao contexto histórico de um “ano decisivo”, que reuniu três “momentos marcantes”: a encíclica Laudato si’, propositadamente publicada em Maio por antecipação aos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS); a aprovação dos ODS, em Setembro, com o Papa a marcar presença na Assembleia Geral das Nações Unidas (durante uma viagem a Cuba e aos EUA); e, por fim, “o primeiro grande teste dos ODS”, com a aprovação do Acordo de Paris em Dezembro.
Oito anos depois, haverá já uma consciência ecológica nas comunidades católicas? “Cada país e cada igreja vai sentir estas questões de forma diferente, porque a essência da ‘ecologia integral’ não é apenas ambiental, é muito também a questão económica e social”, nota Francisco Ferreira. “Cada país olha com maior ou menor intensidade para alguns aspectos de acordo com a sua realidade social, económica, ambiental e até religiosa.”
As pessoas ligam os conceitos de acordo com a ligação que tenham com o tema, descreve Antonio Garrido. “Para um agricultor que tenha necessidade de água, esse tema tem mais importância do que para alguém na cidade”, exemplifica. Falar da Amazónia pode ter mais importância para algumas comunidades, mas no sul da Europa, por exemplo, podem ligar-se mais facilmente os pontos ao relacionar com a seca ou a poluição.
Em Portugal, descreve o veterano ambientalista Francisco Ferreira — que também é católico —, sentiu que esta preocupação “era um mundo novo para a igreja católica”. “Os conceitos que estavam em jogo, a sua interligação, as palavras usadas… Foi preciso alguma digestão da parte da igreja e dos católicos em relação à encíclica”.
Há uma clara diferença entre o impacto da encíclica Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social, publicada em 2020, um documento “numa zona de conforto da igreja”, mais próxima dos valores discutidos dentro da igreja. “A Fratelli tutti não levantou os problemas de literacia e de desconforto que a Laudato si’ causa”, extravasando aquilo que é “a dimensão de temas e discussão próprias daquilo que é a natureza espiritual e de debate dentro da própria igreja”.
Economia de Francisco
A 31 de Julho, na véspera do início da Jornada Mundial da Juventude, teve lugar na Universidade Católica Portuguesa o 4.º Congresso Internacional sobre o Cuidado da Criação. Nele, um painel de jovens “co-criou” o Manifesto Laudato si’, que foi entregue ao Papa Francisco em mãos, num encontro na quarta-feira, pelo jovem português Tomás Virtuoso.
Uma das grandes questões colocadas no documento está relacionada com a organização da economia e como esta pode ser ajustada para proporcionar mais justiça social e ambiental. Para Tomás, com formação de base em Economia mas que actualmente frequenta o curso de Teologia como seminarista, a resposta está em reconhecer os limites.“A economia é uma ciência, e nesse sentido tem limites. Ajuda-nos a perceber e a analisar as causas do crescimento, mas não é capaz de dizer aquilo que é bom.”
Relembra que o sistema capitalista, “com todos os seus defeitos”, foi capaz de ser um motor de redução da pobreza e de inovação por todo o mundo. Contudo, o que se vêm hoje com o exacerbar das desigualdades, é uma “perda do sentido do bem”. “Como é que consigo temperar o sistema económico, orientá-lo para o bem?”, questiona-se.
A resposta, para este e os outros jovens que elaboraram o manifesto, é que este não é só um tema económico, mas também um problema ético, e também político, no sentido de ser preciso aplicar “o princípio do bem comum”.
Algo em que Tomás Virtuoso, de 29 anos, continua a reflectir desde o congresso de segunda-feira é a necessidade de compreender a diversidade de soluções que fazem sentido para cada local, para cada comunidade. “Muitos destes problemas não se resolvem com uma panaceia global para o Norte e para o Sul”, reforça.
Entretanto, os temas continuarão a ser debatidos pelos grupos católicos, seja no seio da igreja ou em diálogo com outras instituições. O movimento Economia de Francisco, que tem um pólo na Universidade Católica Portuguesa, é um dos grupos que procura integrar os princípios defendidos pelo Papa à questão económica, na sequência de um desafio lançado pelo Sumo Pontífice em 2019 para procurar “economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a devasta”. Também o movimento Laudato si’, que esteve envolvido na organização da JMJ, continuará a tentar integrar esta dimensão no seio dos ensinamentos cristãos.
Em Portugal, têm surgido várias comunidades preocupadas com a questão da sustentabilidade, mesmo aquelas que não têm o cuidado com o ambiente como missão principal, como muitas entidades católicas. A associação Zero, por exemplo, integra a rede Cuidar da Casa Comum, que integra associações católicas mas não apenas, congregando “múltiplos esforços de associações, inclusive de religiões diferentes”, para reflectir sobre o entrelaçamento destas dimensões.