Reacção que vemos na nossa cozinha explica como o carbono fica retido no fundo do mar

Carbono retido em moléculas orgânicas acumula-se no fundo do mar graças a um processo descortinado numa investigação científica publicada agora na revista Nature.

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O oceano absorve 30% do CO2 que os humanos emitem Rui Gaudencio
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O ciclo do carbono na Terra ainda guarda alguns mistérios, um deles está ligado à forma como o carbono é depositado no fundo dos oceanos. Um novo estudo mostrou que minerais que contêm ferro e manganés promovem uma reacção química que facilita o carbono contido em moléculas orgânicas fixar-se no fundo oceânico. Através de uma experiência laboratorial, a investigação estimou ainda que este processo é responsável pela acumulação de 4,1 milhões de toneladas de carbono por ano, o que tem impacto nos ciclos da Terra a longo prazo. O estudo foi publicado nesta quarta-feira na revista Nature.

O carbono é o elemento que está no centro das alterações climáticas, já que é emitido em grandes quantidades devido às actividades humanas e promove o efeito de estufa na Terra. A acumulação crescente daquele elemento na atmosfera, sob a forma de dióxido de carbono (CO2) e também de metano (CH4), faz com que a Terra retenha cada vez mais calor vindo da luz solar.

Mas a atmosfera é apenas um dos vértices do ciclo do carbono. O CO2 do ar pode ser absorvido pelos organismos que fazem a fotossíntese, integrar novas moléculas orgânicas e entrar nas cadeias tróficas dos seres vivos. Ao mesmo tempo, cada vez que os seres vivos respiram, estão a exalar CO2. Quando os seres vivos morrem, na terra e no mar, os seus restos orgânicos podem ser decompostos, com a libertação de CO2. Mas parte deste carbono também pode entrar no ciclo geológico através de outros processos químicos.

Por outro lado, os oceanos absorvem anualmente grandes quantidades de CO2 da atmosfera, compensando uma parte do gás emitido pelas actividades humanas, o que torna esta grande massa de água num elemento fundamental do ciclo do carbono.

“É importante compreender como é que o carbono, tanto orgânico como inorgânico, é preservado nos oceanos, considerando que estes contêm cerca de 50 vezes mais carbono [do que a atmosfera]. Uma mudança em qualquer um dos fluxos do carbono do oceano para a atmosfera poderá ter implicações de grande alcance para muitos ecossistemas e para as alterações climáticas”, explica ao PÚBLICO Oliver Moore, investigador na área da geoquímica da Universidade de Leeds, no Reino Unido, e primeiro autor do artigo agora publicado.

“Apesar de grandes quantidades de carbono serem retidas nos oceanos, apenas uma pequena fracção deste carbono é preservada no seu fundo, que é o principal sumidouro de carbono numa escala de tempo de milhões de anos. É por este sumidouro que o nosso grupo de investigação está fascinado”, adianta o especialista.

O carbono inorgânico está contido em minerais ou em elementos como o CO2, ou seja, não está incorporado em moléculas orgânicas; já o carbono orgânico está integrado em moléculas que contêm hidrogénio e constituem os sistemas vivos. Quando os organismos morrem, este material pode ser degradado por bactérias, e manter-se no ciclo das cadeias vivas ou pode acumular-se no fundo do oceano.

Há vários processos que contribuem para isso. Um exemplo é quando “o carbono orgânico se agarra a uma partícula mineral na coluna de água, tornando-se menos flutuante e por isso afunda-se mais rapidamente para o leito do mar, diminuindo o tempo para os micróbios o degradarem”, exemplifica Oliver Moore.

Na investigação actual, Moore e a sua equipa foram observar a mecânica de outro processo chamado “reacção de Maillard”. Esta reacção química junta moléculas orgânicas em polímeros cada vez maiores e ocorre naturalmente, principalmente em altas temperaturas. Estes polímeros criados são responsáveis, na cozinha, por novos sabores que tornam alimentos cozinhados mais apetecíveis. Uma marca desta reacção é a cor castanha que surge na crosta do pão ou na carne assada.

No fundo do mar, o resultado desta reacção é a produção de polímeros muito maiores, que dificultam o trabalho de degradação das bactérias e permitem que o carbono fique retido no fundo do mar, contribuindo para o sumidouro na “escala de tempo de milhões de anos”, como Moore referiu. No entanto, pensava-se que as baixas temperaturas nestes locais impedissem a reacção de se dar.

“Foi sugerido na década de 1970 que a reacção de Maillard poderia ocorrer nos sedimentos marinhos, mas pensava-se que o processo seria tão lento que não teria impacto nas condições que existem na Terra”, resumiu Oliver Moore, num comunicado da Universidade de Leeds.

É esta ideia que fica em xeque após a experiência feita por Oliver Moore e colegas. A equipa quis saber que efeito teria a presença de minerais ricos em elementos de ferro e manganés, que podem ser catalisadores da reacção de Maillard, e existem nos fundos marinhos. Em laboratório, a equipa testou a reacção em condições semelhantes às do leito do oceano com e sem elementos metálicos, e descobriu que, na presença de elementos metálicos, a reacção é dezenas de vezes mais rápida.

“Descobrimos que quanto mais ferro e manganés estão presentes, mais rápido se formam as substâncias. Por isso, como a quantidade de ferro e manganés que é fornecida ao oceano variou ao longo da história da Terra, também terá variado a produção daquelas substâncias, ajudando a regular o clima do planeta e os níveis de oxigénio atmosférico, o que permitiu a existência de condições estáveis para a vida se desenvolver”, explica o cientista ao PÚBLICO.

A ligação entre aquele processo e os níveis de oxigénio pode não ser óbvia, mas é importante para a equipa. Se a matéria orgânica se afunda no leito do oceano e não fica disponível para ser degradada pelos microorganismos, então estes não vão usar o oxigénio necessário para realizar essa degradação. Dessa forma, o oxigénio que não é usado ali fica disponível para outros seres vivos no oceano ou para se acumular na atmosfera. Ao longo de milhões de anos, essa diferença tem um impacto na vida do planeta, argumenta a equipa.

Quantificação de carbono

O passo seguinte dos investigadores foi obter uma estimativa da quantidade anual de carbono que os oceanos acumulam a partir das medições feitas no laboratório. De acordo com o estudo, a reacção de Maillard dá-se principalmente nas margens submersas das placas continentais e não nas placas oceânicas, que perfazem a maioria do fundo oceânico.

É nestas margens que mais matéria orgânica está disponível, não só por causa do fluxo que vem dos rios, mas também pela quantidade de algas que morrem e se decompõem. Por outro lado, “o oxigénio não penetra tão profundamente no fundo oceânico das margens das placas continentais como penetra em ambientes oceânicos mais profundos, deixando menos tempo para os micróbios usarem esse oxigénio para degradar moléculas orgânicas”, adianta Oliver Moore.

Usando modelos matemáticos e tendo em conta a área do oceano onde esta reacção pode ocorrer, os cientistas chegaram à conclusão de que este processo poderá acumular 4,1 milhões de toneladas de carbono no fundo marinho anualmente. “É apenas uma estimativa inicial. Poderá subir ou descer à medida que esta nova área de investigação se desenvolve”, admite o investigador.

Para se ter uma noção da dimensão daquele valor no contexto do ciclo do carbono, é preciso ter em conta que a humanidade emitiu 10,13 milhões de toneladas de carbono sob a forma de CO2 em 2021, o que equivale a 2470 vezes mais do que as 4,1 milhões de toneladas de carbono. Já os oceanos absorvem anualmente cerca de 30% do carbono emitido nas actividades humanas, ou seja, a estimativa feita pelos cientistas é uma pequena parte do carbono em circulação. [Ainda assim,] o nosso trabalho sugere que isto pode ter um impacto significativo nos ciclos de carbono e oxigénio”, diz o investigador.