Começou “uma era de ebulição global”, avisou António Guterres. O que é que isso significa?

A ONU lançou uma discussão sobre o termo “ebulição global”. Os cientistas estão divididos quanto à sua utilização: uns sublinham que não é um termo científico, outros dizem que pode ser relevante.

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Earth is immersed in water, among the clouds against the sky."Elements of this image furnished by NASA" Alexandrum79/GettyImages
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O secretário-geral da ONU emitiu um aviso severo sobre as alterações climáticas esta semana: "A era do aquecimento global terminou; a era da ebulição global chegou", declarou António Guterres numa conferência de imprensa, quando os cientistas confirmaram que Julho deverá ser o mês mais quente de que há registo na Terra.

"As alterações climáticas estão aqui. São aterradoras. E isto é apenas o começo", disse António Guterres numa conferência de imprensa na sede da ONU em Nova Iorque, na quinta-feira, enquanto descrevia "crianças arrastadas pelas chuvas de monção, famílias a fugir das chamas [e] trabalhadores a sucumbir ao calor abrasador".

Os dados mostram que "o mês de Julho já registou o período de três semanas mais quente de sempre; os três dias mais quentes de que há registo; e as temperaturas oceânicas mais elevadas de sempre para esta época do ano".

O discurso de António Guterres lançou uma discussão sobre o termo "ebulição global" e pelo seu significado - embora os cientistas estejam divididos quanto à sua utilização, com alguns a sublinharem que não é um termo científico, enquanto outros dizem que pode ser relevante.

"Guterres tentou encontrar uma formulação ainda mais convincente e sensacionalista para tentar captar a atenção das pessoas, e penso que todos compreendemos por que razão está a fazer isso, porque temos de fazer com que os governos levem as alterações climáticas a sério e as coloquem no topo das suas agendas", disse Piers Forster, professor de física climática na Universidade de Leeds, em Inglaterra, e presidente do Comité Britânico para as Alterações Climáticas, numa entrevista no passado sábado.

"Mas penso que parte do que está a dizer agora começa a afastar-se das provas científicas subjacentes e, em última análise, isso começa a perder credibilidade ao longo do tempo. Isso acaba por dessensibilizar-nos a todos".

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O mapa das temperaturas registadas a 3 de Agosto CLIMATE REANALYZER, CLIMATE CHANGE INSTITUTE, UNIVERSIDADE DO MAINE

As mudanças são "extremas, mas estão exactamente de acordo com as nossas previsões", disse Forster. "Isto é o que dissemos às pessoas que iria acontecer há 20 anos e está a acontecer".

Esta não é a primeira vez que as Nações Unidas cunham um termo na tentativa de transmitir ao público o risco representado pelas mudanças climáticas. Em 2021, Guterres usou a frase "código vermelho para a humanidade" para descrever as conclusões de um relatório histórico que dizia que os humanos tinham empurrado o clima para "território sem precedentes".

Sonia I. Seneviratne, professora de dinâmica terra-clima na ETH Zurich, na Suíça, disse acreditar que alguns termos anteriores - incluindo o "código vermelho para a humanidade" - foram úteis para sublinhar a importância da questão.

"Mas acho que a certa altura esgotam-se os superlativos para transmitir a urgência de agir. E a questão principal talvez não seja tanto a formulação, mas apenas a compreensão de que estamos na actual crise climática. "

"Na minha perspectiva, e penso que na de muitos dos meus colegas, diria definitivamente que há um sentimento de que a emergência, a urgência da situação, talvez não seja realmente percebida pelo público em geral, ou não o seja suficientemente."

Suraje Dessai, professor de adaptação às alterações climáticas na Universidade de Leeds, afirmou que "provavelmente precisamos de uma diversidade de formas de tentar comunicar as alterações climáticas ao público, para que este possa compreender a urgência da situação".

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A temperetura dos oceanos também está a quebrar recordes

A ebulição global pode, de facto, ser "bastante relevante" em algumas circunstâncias, disse - por exemplo, em locais onde tanto a temperatura como a humidade aumentam significativamente. "Isso terá um enorme impacto na mortalidade, porque se a humidade e a temperatura aumentarem ao mesmo tempo, o nosso corpo não consegue suar. Essas temperaturas ocorrem, por exemplo, em todo o Médio Oriente e um pouco no Paquistão e na Índia, e no futuro isso vai acontecer ainda mais".

Alguns fenómenos, incluindo o aquecimento dos oceanos e a redução do gelo marinho, podem estar a ocorrer mais rapidamente do que os cientistas esperavam, continuou, "mas, por exemplo, as vagas de calor, são coisas que estão previstas há muito tempo".

Os três especialistas concordam que é fundamental uma combinação de acções individuais e governamentais.

"Penso que temos de fazer muito", afirma Dessai, argumentando que os países da Europa e de todo o mundo "não estão a preparar-se para um clima em mudança, para as vagas de calor, para a subida do nível do mar, por exemplo, para as secas e inundações, etc.”. “Precisamos de investir para que as nossas sociedades estejam mais bem preparadas para as alterações climáticas."

Ao mesmo tempo, nota Seneviratne, a capacidade dos indivíduos para reduzirem as suas emissões pode variar de zona para zona - por exemplo, pode ser mais difícil viver sem carro em partes dos Estados Unidos do que em muitos países europeus.

Na Suíça, segundo ela, uma estimativa calculou que os indivíduos poderiam afectar cerca de metade da sua pegada de carbono. "Há decisões, há partes das emissões que podem ser reduzidas por decisões individuais, mas há uma grande parte que tem de ser reduzida a nível global em termos de alteração das leis e das infra-estruturas."

Forster defende que as pessoas se sentem preocupadas com as alterações climáticas, mas muitas vezes não compreendem o que os indivíduos, as empresas e os países podem fazer.

"Parte do que testemunhámos neste mês de Julho deve-se às alterações climáticas, mas uma outra parte é também azar", considera Forster. "Mas podemos dizer com confiança que estas são as condições médias que se verificarão dentro de 10 anos. Por isso, temos de trabalhar arduamente para preparar as nossas sociedades para o que está para vir."