Byung-Chul Han: “O smartphone é uma prisão”

“Se quisermos continuar a ser humanos, temos de inventar outra forma de vida”, diz, numa rara entrevista, o filósofo que denuncia a “sociedade do cansaço”.

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Byung-Chul Han
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Não é fácil chegar à fala com Byung-Chul Han. Pelo menos, de acordo com os padrões do século XXI. O filósofo nascido na Coreia do Sul, residente na Alemanha, vê o telemóvel como uma “não-coisa”, não usa redes sociais e raramente fala directamente sobre o seu trabalho (online ou offline). Só que nos últimos 13 anos encontrou um público ávido pelas críticas que faz à sociedade moderna – uma cultura que acredita que é livre, mas vive obcecada com a produtividade, refém de ecrãs, e presta culto diário a um novo deus chamado Big Data.

“Todas as épocas têm as suas aflições características", resume no arranque de A Sociedade do Cansaço (ed. Relógio d’Água, 2014), o diagnóstico em prosa da modernidade que em 2010 catapultou o nome do filósofo, de quem pouco se sabe ao certo, para a lista de grandes pensadores contemporâneos, com livros traduzidos em mais de uma dezena de línguas. Há mais de 20 anos, porém, que Han escreve sobre as “doenças” do ser humano moderno. A incapacidade de as pessoas deixarem os telemóveis de lado é um dos grandes sintomas. Nos seus livros e intervenções diz que nos exploramos a nós mesmos, com ferramentas digitais como o Zoom; que vivemos esgotados e deprimidos devido ao actual modelo de sociedade; que nos entregamos ao narcisismo online e esquecemos o outro; que nos deixamos vigiar pela Internet e pela profusão de dispositivos alegadamente smart. Pede “uma política da inactividade”, que nos liberte das obrigações da produção e torne possível um tempo de “ócio verdadeiro”.

A linguagem simples e directa, com referências a filósofos da Antiguidade e clássicos da ficção científica, atrai um público sem experiência em filosofia, que, quase paradoxalmente, comenta os seus textos na Internet e partilha excertos dos seus livros em redes sociais e fóruns como o Reddit.

“A nossa sociedade é uma fusão de Admirável Mundo Novo, de Huxley, e de 1984, de Orwell. Estamos sob vigilância constante, mas sentimo-nos livres. Na realidade, o smartphone, que promete a ideia de liberdade, é uma prisão”, constata Han numa troca de emails com o Ípsilon sobre a sua visão da tecnologia. “Estamos constantemente a avaliar-nos uns aos outros. Melhores classificações prometem mais lucros. Tentamos ser simpáticos para obter melhores classificações”, realça. É assim que até a “bondade é capitalizada”.

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Estrela do pensamento contemporâneo, Byung-Chul Han não usa redes sociais e raramente dá entrevistas Alberto Cristofari/Contasto via reuters

Não é fácil chegar à fala com Byung-Chul Han, mas não é impossível. Parte do mistério em torno do autor, que estudou Metalurgia, Teologia e Literatura, vem da visão que Han tem da filosofia – uma “forma de magia”, diz-nos, capaz de seduzir as pessoas a reflectir. Revelar demasiado estraga o efeito.

Quando o filósofo esteve em Portugal, em Abril, com palestras no Porto e em Lisboa para falar sobre o impacto da tecnologia na sociedade (um tema ao qual fugiu), evitou entrevistas frente a frente, com mudanças de horário ou pedidos de última hora para ter um intérprete e definir o tema da conversa. Mais tarde, porém, aceitou responder a algumas perguntas do Ípsilon por escrito.

O email é talvez das poucas ferramentas digitais que Han vê como vantajosas; a outras chama “não-coisas”. O telemóvel, insiste, funciona, cada vez mais como um “panóptico” digital – uma prisão circular, idealizada pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham (1748-1832), que permite uma vigilância constante sem que as pessoas saibam se estão a ser observadas.

“As coisas não produzem informação. É aqui que o smartphone se distingue das coisas”, explica ao Ípsilon. Em Abril, tivemos de usar o dispositivo como caução para um aparelho de tradução e, dessa forma, ouvir a sua primeira palestra. Não é um objecto? “Os objectos não nos espiam”, rebate.

Aos olhos do filósofo, o telemóvel ocupa um lugar central no altar do novo culto aos dados a que Han chama “dataísmo”. O conceito descreve uma nova forma de organização social baseada na recolha, tratamento e análise de grandes quantidades de dados. Para o filósofo, os dados digitais tornaram-se a principal fonte de poder e riqueza e as pessoas vêem-se reduzidas a fornecedoras de dados, sem autonomia ou privacidade. “O smartphone não é um objecto, mas um informador, que nos vigia e influencia”, insiste Han. “Fazer like [com o telemóvel nas redes sociais] é rezar digitalmente”, compara. “Só que já não pedimos perdão, pedimos atenção.”

E acrescenta, voltando à nossa pergunta: “Acho que é uma excelente ideia entregar o telemóvel como caução. Assim [as pessoas] podem ouvir a palestra, em vez de estarem a olhar para o seu smartphone...”

Quem estiver desatento não consegue compensar através da obra de Han. Os seus discursos raramente são sobre aquilo que escreve ou sobre tecnologia. Durante o par de conversas em Portugal, a primeira intitulada Sobre Eros e a segunda O Espírito da Esperança, falou, principalmente, sobre a importância de se cultivarem jardins (literalmente). É um passatempo de Han, que gosta particularmente de hortênsias.

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Filósofo da anticomunicação

“[Han] é um exemplo de anti-informação e anticomunicação na era da hipercomunicação”, define César García, professor de Comunicação Estratégica na escola de negócios ESIC, em Madrid, numa conversa com o Ípsilon sobre o autor que tem sido tema de alguns dos seus ensaios. Espanha tornou-se um dos maiores mercados do filósofo.

A forma como Han fala (ou não fala) sobre o seu trabalho faz parte da sua tese. “Han considera que, devido a um excesso de informação, a realidade não consegue ser percepcionada. Critica a informação abundante e permanente promovida e fornecida pelas redes sociais e pela Internet no seu conjunto”, argumenta García. “Enquanto, no passado, as pessoas eram controladas através da força física, agora esse controlo tornou-se mental.”

Em Capitalismo e Pulsão de Morte, o mais recente livro editado em português, no final de Abril, pela Relógio d’Água, Han defende mesmo que a necessidade constante de estar sempre “on”, sempre ligado, é a força motriz do capitalismo, perpetuada pelo “dataísmo”. É isto que conduz a uma necessidade de “optimização” constante, com relógios e pulseiras que monitorizam o corpo humano, mesmo durante o relaxamento. É uma nova forma de poder que cria uma sociedade em que as pessoas praticam a autovigilância e a auto-exploração, denuncia.

“Exploramo-nos voluntariamente até sucumbirmos”, alerta na obra. “Se fracassar, responsabilizo-me por esse fracasso. Se sofrer, se for à falência, a culpa é toda minha.”

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CHARLES PLATIAU/REuters

O título recupera o conceito freudiano segundo o qual o ser humano procura a autodestruição e o retorno a um estado inanimado. Han afirma que o neocapitalismo é movido por um desejo de crescimento que é semelhante à pulsão de morte descrita por Sigmund Freud.

“[Han] não é alguém que está a tentar produzir um produto comercial que venda bem”, partilha André Barata, filósofo português. “Ele pensa e pensa filosoficamente e demonstra à sociedade que o pensamento filosófico continua actual e é relevante”, resume o professor da Universidade da Beira Interior.

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Cultivar jardins é um passatempo de Han. “Cuido das árvores e das flores como das pessoas que amo”, justifica. “A informatização do mundo rouba-nos a nossa presença.” O jardim, pelo contrário, “é um lugar de presença” sandie clarke

Só que o seu passado invulgar, que Byung-Chul Han vai partilhando em excertos nas suas obras (raramente fora delas), também contribui para o interesse por este filósofo misterioso.

Da Coreia do Sul à Alemanha

Da infância, pouco se sabe. Han nasceu algures em Seul, em 1959 (a data exacta é uma incógnita), onde estudou Metalurgia depois de terminar o liceu. Aos 22 anos, pediu aos pais para ir para Alemanha, para prosseguir os estudos na área. Mentiu: a missão era estudar Filosofia, Literatura e Teologia.

Apesar de ter sido aceite na Universidade Técnica de Clausthal‑Zellerfeld, perto de Göttingen, diz que não sabia a língua. Em jovem, imaginava apaixonar-se por uma mulher alemã à chegada que lhe ensinasse a língua para saber o que Han pensava dela. Não foi o que aconteceu, mas também não se conhece a verdadeira história. Facto é que aprendeu a escrever e a falar alemão e em 1994 completou o doutoramento sobre o pensamento do filósofo Martin Heidegger.

A certa altura, naturalizou-se como cidadão do país, e abdicou do passaporte sul-coreano. Não se sabe ao certo por que razão deixou a sua terra natal. “No campus da minha universidade em Seul, era frequente olhar para o céu e pensar: é demasiado bonito para eu querer passar o resto da minha vida debaixo dele”, escreve cripticamente em Capitalismo e Pulsão de Morte.

O facto de ser um sucesso de vendas no país de origem não o surpreende. “A Coreia do Sul é uma sociedade de cansaço na sua fase terminal. Na verdade, vemos pessoas a dormir em toda a Coreia. Em Seul, as carruagens do metropolitano parecem carruagens-cama”, comenta, numa conversa com Ronald Düker e Wolfram Eilenberger, dois filósofos alemães, que partilhou no mesmo livro.

Antes de ganhar fama com as suas críticas à sociedade moderna, foi professor na Universidade das Artes, em Berlim. Ainda lá lecciona, pontualmente. Além da tecnologia, o ressurgimento da xenofobia na Alemanha e noutros países europeus é algo que o preocupa – mas também vê a perda de interesse no que é diferente (sejam pessoas, culturas ou ideias) como uma consequência da digitalização e estandardização.

Em 2023, divide o tempo entre a escrita, a reflexão e o seu jardim. Sem alma de viajante, diz que é preciso muito para o arrancar do pequeno espaço a que se dedica e pô-lo em frente a uma assistência. A viagem a Portugal foi uma excepção. Além de falar do seu passatempo, aproveitou a estada para estrear The Man Who Breaks In, no Cinema Batalha, no Porto. Han filmou e realizou o filme de duas horas sobre forças opostas no mundo há seis anos, mas nunca teve pressa de o exibir e raramente menciona o projecto.

Mistério como marketing?

O enigma em torno de Han não convence todos. “Não sei se é por causa dele ou da sua editora, mas algumas pessoas acreditam que há uma espécie de marketing, de insinceridade nesta imagem cultivada de um filósofo misterioso”, pondera César Garcia. “Han não tem um perfil público. Raramente aparece em público ou concede entrevistas. Quando o faz, pede aos jornalistas que desliguem os gravadores ou responde a perguntas por email”, recorda. Ao mesmo tempo, observa García, “as suas fotografias públicas são artísticas e aparece a ler em locais públicos rodeado de graffiti. Pelo menos em termos gráficos, a sua imagem parece fabricada.”

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O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han Alberto Cristofari/Contasto via reuters

Os detractores, continua Garcia, nem sequer o consideram um filósofo, mas um escritor de livros de auto-ajuda. “Mas, por detrás disso, penso que há um ressentimento porque a sua filosofia é compreensível para toda a gente e vende livros numa época em que muito pouca gente o faz”, diz o professor espanhol. “[Han] tem ideais contraculturais” que se destacam.

Por outro lado, talvez uma das melhores formas de explicar a popularidade dos pensamentos de Han seja dizer que “dialogam com coisas que nós já andávamos a pensar”, comenta André Barata. Mais do que momentos de revelação, os textos apresentam-nos “uma perspectiva bastante integrada, como se fossem uma espécie de multiolhares que vão rodeando esta realidade do nosso tempo”.

A forma como Han vê as novas formas de inteligência artificial generativa, que prometem produzir conteúdo a partir do zero, é exemplo disso. Han descreve o ChatGPT, que se tornou um dos temas quentes da actualidade, como “uma máquina estúpida”, por ser incapaz de ver a filosofia como mais do que uma disciplina científica. É algo que muitos pensarão. Os dados que alimentam os programas produzem a resposta mais provável, não a mais criativa. Ao mesmo tempo, o filósofo alerta que isso não torna a tecnologia menos “perigosa” ou menos capaz de influenciar as pessoas.

Quando perguntamos ao filósofo sobre o antídoto para os problemas do século XXI, fala-nos do seu jardim. “Temos de nos libertar das algemas do capital e da produção. A comunicação controlada pelo capital fragmenta a nossa atenção, até a nossa alma. O capital transforma a pessoa, no seu todo, numa mercadoria”, prescreve. “Temos [como sociedade] de aprender a demorar-nos de novo.”

Deixar o telemóvel, que se tornou o símbolo do capitalismo, pode ser o primeiro passo. “O smartphone é um espelho digital no qual me revejo constantemente. Satisfaz as minhas necessidades e degrada ‘o outro’ a um objecto de consumo”, conclui. “O outro é agora consumível, privado de alteridade.”

Cultivar algo, como um jardim, não permite essa atitude. “Cuido das árvores e das flores como das pessoas que amo”, justifica. “A digitalização e a informatização do mundo roubam-nos a nossa presença”, continua. “Para mim, o jardim é um lugar de presença.”

Se as pessoas não conseguirem encontrar esses lugares, sejam jardins ou outros espaços longe do excesso de comunicação, ficam presas ao ciclo interminável do like e do excesso de produtividade. “Se quisermos continuar a ser humanos, temos de inventar outra forma de vida”, augura Han. E remata: “O meu próximo livro chama-se O Espírito da Esperança”, aludindo a um livro com mais soluções e mostrando que, apesar do mito em torno da sua figura, o filósofo sabe promover o seu trabalho. Mesmo que não seja fácil chegar à fala com Byung-Chul Han.

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