County lines ou o tráfico de crianças no Reino Unido

Com apenas 11 anos, Leah era um correio de droga, um entre milhares de adolescentes a viajar pelo país de região em região ou, como o nome indica, de um county para outro county.

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Megafone P3: County lines ou o tráfico de crianças no Reino Unido Christina Chekhomova/Pexels
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A Leah faltava às aulas uma semana de cada vez e ninguém se lembrava ou não queria saber. Fosse Leah uma aluna exemplar e porventura perduraria na memória dos professores. Até terem a Leah do lado de lá do gradeamento a passar algo ao Toby debaixo do nariz do carro da polícia estacionado à porta da escola. E se os professores pouco faziam, a polícia menos fez ao limitar-se a alertar a direcção da escola enquanto Leah partia tranquilamente rua fora em direcção a mais um cliente.

Leah tinha 11 anos e a sua história é a mesma de todos os meninos e meninas perdidos nesta imensa "terra do nunca", sem ninguém à espera em casa, a dormir num colchão estendido na sala, sem comida ou roupa para além da que é oferecida por uma professora como incentivo para ir à escola.

Fazer parte de um gangue nestas condições (e sem condições) foi uma questão de tempo. Com apenas 11 anos, Leah era um correio de droga, um entre milhares de adolescentes a viajar pelo país de região em região ou, como o título indica, de um county para outro county, de Londres para York, de York para Manchester, de Manchester para Liverpool, de Liverpool para Birmingham, dias sem fim sozinha em autocarros e comboios com pouco mais para além de um bilhete e uma morada, sem nunca ser interpelada por um adulto nesta sociedade entorpecida e a rasar o distópico.

Se promessas cumpridas houve só mesmo as promessas de agressão. Leah já viu de tudo entre jovens queimados com água a ferver ou esfaqueamentos por dívidas de 20 libras numa vida sem valor. A cada entrega, o respectivo abuso físico e sexual se quisesse sair a caminho da entrega seguinte e a certeza de mais abusos e os irmãos e irmãs reféns caso concebesse fugir.

"Longe da vista, longe do coração" é a expressão em português, traduzida em inglês por “out of sight, out of mind”. Se a mente, a razão, substitui o coração, então talvez se explique esta frieza e falta de empatia quando, ao longo de dois anos, nem a mãe, a escola, os assistentes sociais, a polícia, os revisores nos comboios ou os transeuntes em geral quiseram saber de uma criança tantas vezes a chorar às escondidas nas casas de banho das estações de comboio no desespero de quem está por sua conta e verdadeiramente só.

Foi nestas condições que a Leah nos veio parar às mãos, referenciada pela escola fruto de repetidas faltas e desinteresse pelos estudos e a nossa curiosidade a questionar porquê.

A solução passou pelo realojamento da família num município na zona leste de Londres, não necessariamente melhor mas pelo menos longe. O “out of sight, out of mind” também se aplica aos gangues, ainda mais numa sociedade cada vez mais empobrecida e com tantas crianças para recrutar. Basta ir às ruas. Basta as escolas fecharem durante o Verão e aqui estão eles, os bandos de pardais sem alternativa e os cigarros electrónicos, as bicicletas, os créditos para os jogos online como alternativa nem por isso gratuita porque nada é de graça, há sempre um favor a pedir em troca quando se está em dívida. Os gangues sempre um passo à frente.

Este é, infelizmente, um terreno fértil para tantas outras Leahs, a história a repetir-se e o tráfico de crianças no Reino Unido como realidade bem presente. Quanto à Leah, recebemos agora boas notícias: acabou o ensino secundário, para o ano já tem um lugar garantido no curso de assistente social e em breve será mais uma mais-valia. Mas a Leah já é uma mais-valia: basta contar a sua história.

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