Para Natalie Castro, as migas de Leiria sabem ao reencontro dos irmãos
Era em Agosto que todos voltavam de França e, durante várias semanas, se reuniam à volta da mesa. O primeiro prato eram sempre as migas com couve, feijão-frade e muito azeite.
Sentada num banco, a miúda de nove anos olhava, ansiosa, para os adultos que, depois de uma manhã de trabalho, se tinham sentado à mesa para comer. Na aldeia perto de Leiria, onde Natalie Castro vivia, os trabalhos do campo eram (e ainda são) divididos por todos. “Hoje vai toda a gente para o terreno do Joaquim apanhar batata, amanhã vão para o terreno da São apanhar milho”, explica a cozinheira do Isco Padaria e Bistro, no bairro de Alvalade, em Lisboa.
Estas “jornas” eram habituais e a mãe de Natalie juntava-se a vizinhos e amigos para esses trabalhos do campo, que se fazem melhor com ajuda. Mas preferia que a filha ficasse em casa e, por isso, dava-lhe uma tarefa: cozinhar. A receita ficava escrita na parte de trás dos envelopes com as contas da água ou da luz, e Natalie ia seguindo os passos.
Naquele dia, coube-lhe fazer uma feijoada para dez ou 12 pessoas, o que, apesar de a carne já estar cozinhada, era uma grande responsabilidade. Mas nunca se esqueceu da ansiedade e da alegria, quando, sentada no seu banco, começou a ver o agrado nos rostos de quem comia. Foi a memória dessa sensação boa que, muitos anos e várias vidas depois (entre as quais as de enóloga e a de designer de moda), a fez querer ser cozinheira.
Mas não é uma receita de feijoada que aqui traz hoje (e também não é uma receita da avó, mas sim da mãe, embora o espírito seja o mesmo). Trata-se de um prato que está ligado a memórias “muito sentimentais, que mexem com muita coisa”.
Natalie nasceu em França há 43 anos, a mais nova de quatro irmãos, com uma diferença de idade considerável relativamente aos outros. Quando os pais voltaram para Portugal, instalando-se na aldeia junto a Leiria, vieram todos mas os irmãos, habituados à vida em França, não se adaptaram e regressaram. Ela “foi ficando por cá” e por isso cresceu “praticamente como filha única”.
Quando, no Verão, os irmãos voltavam, primeiro só eles, mais tarde já com filhos, era sempre uma festa. A casa enchia-se, a mesa estava sempre posta para 14 ou 16 pessoas, ao almoço e ao jantar. E era certo que a primeira receita que a mãe fazia eram “as migas típicas de Leiria, que não têm nada a ver com as do Alentejo, com a couve do caldo verde ripada, feijão-frade e broa frita em azeite”, que normalmente acompanhava entrecosto grelhado ou sardinha assada. Com duas excepções: Natalie e um dos irmãos preferiam uma posta de bacalhau grelhado.
“Eles vinham na viagem e diziam à minha mãe que já estavam a cheirar as migas com azeite”, recorda. O gosto passou para a geração seguinte, e hoje a filha de Natalie pede sempre à avó que lhe faça as migas. O que é que elas têm de especial? O feijão-frade é o que a mãe de Natalie semeia e a broa é comprada na aldeia.
As migas sabem a produtos da horta, mas sobretudo sabem aos bons reencontros, ao mês de Agosto com a casa cheia e a mesa posta para muitos. Sabem ao matar das saudades de um ano de ausência, às crianças cada vez mais crescidas, às conversas que já não têm de ser mais adiadas, às histórias que se contam sempre como se fosse a primeira vez, às memórias que não se perdem, aos risos de todos.