Seca abre caminho em Espanha para estudos arqueológicos (mas também para saques)

Ao longo dos últimos três anos de seca na Península Ibérica, cerca de 1700 sítios arqueológicos emergiram das albufeiras secas, segundo dados do Ministério da Cultura e do Desporto de Espanha.

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Dólmen de Guadalperal fotografado na albufeira Valdecañas, na província espanhola de Cáceres, dia 3 de Agosto de 2022 Susana Vera/Reuters
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A seca que assola a Península Ibérica tem trazido oportunidades e preocupações para o domínio da arqueologia. Em 2019, por exemplo, a albufeira de Valdecañas, na província de Cáceres, atingiu mínimos históricos em termos de massa de água, deixando a nu o dólmen de Guadalperal. A circunstância permitiu que uma dupla de arqueólogos desenvolvesse um projecto aprofundado de prospecção do conjunto de menires com cerca de sete mil anos, também conhecido como o Stonehenge espanhol.

“As albufeiras ‘encapsularam’ a imagem dos territórios onde foram realizadas [barragens] nos anos 1960 e 70, oferecendo valiosas referências arqueológicas. Para fazer face ao seu estudo, várias entidades têm de chegar a acordos devido à complicação que estes procedimentos requerem relativamente à propriedade das diferentes áreas submersas. O trabalho em Valdecañas foi possível graças a esse consenso”, explicou ao PÚBLICO Primitiva Bueno Ramírez, professora catedrática de Pré-história na Universidade de Alcalá de Henares, na Espanha.

Face às previsões de seca persistente, uma comissão constituída pelo Ministério da Cultura e do Desportos de Espanha, pela Junta de Estremadura e pela Confederação Hidrográfica do rio Tejo confiou a Primitiva Ramírez e a Enrique Cerrillo Cuenca, da Universidade Complutense, o projecto de investigação arqueológica do dólmen de Guadalperal. A escolha recaiu sobre a dupla, diz a cientista espanhola, uma vez que ambos haviam trabalhado com dólmenes submersos em zonas pantanosas do Tejo.

Primitiva Ramírez defende que, em termos de crise climática, o consenso entre os diversos poderes administrativos “deve ser estabelecido como uma acção sustentada no tempo, dada a previsão de seca que paira sobre os países do Sul da Europa”. Só assim é possível aos cientistas desenvolver um trabalho estruturado, com diferentes objectivos, como o que foi levado a cabo no sítio arqueológico de Valdecañas.

Seca emerge 1700 sítios arqueológicos

Um trabalho do diário espanhol El País adianta que, ao longo dos últimos três anos de seca hidrológica na península, cerca de 1700 sítios arqueológicos emergiram, segundo dados do Ministério da Cultura e do Desporto de Espanha.

Grande parte desse património era então desconhecido e, para salvaguardá-lo dos saqueadores, a localização exacta não é divulgada, mas já foi compilada num banco de dados governamental, refere o jornal espanhol. Se, por um lado, a seca hidrológica abre novas possibilidades arqueológicas, por outro traz preocupações relacionadas com o saque de património histórico.

“Quando chegamos ao reservatório de Iznájar [entre Córdoba, Málaga e Granada], os saqueadores já o haviam pilhado. E ninguém sabia da sua existência”, afirmou ao El País Ángel Villa, coordenador do Plano Nacional de Arqueologia de Espanha.

Esperanza Martín Hernández, que dirige trabalhos de campo em diferentes sítios arqueológicos no norte da Espanha, recorda esse alerta, mas admite que há, infelizmente, mais exemplos. "Há alguns dias, Ángel Villa chamou a atenção para a pilhagem da barragem de Iznájar; mas este não é um caso único; é relativamente comum encontrar sítios completamente violados por saqueadores", refere em resposta ao PÚBLICO, por e-mail.

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"Actualmente, o saque é um dos maiores perigos para a arqueologia", reconhece a especialista, justificando: "Da mesma forma que os amantes e investigadores do passado procuram estes lugares, também são percepcionados por aqueles que vêem neles a possibilidade de espoliação."

Há outros lugares que ficaram a descoberto, mas que não são tornados públicos antes de poder assegurar a sua protecção. "Sem vos dizer o local exacto, pois não gostaria que continuasse a ser violado, mostro-vos uma das duas vilas romanas que foram identificadas graças à seca. Uma em particular é como um queijo gruyère, mas a outra ainda não foi vista: não diremos nada para que permaneça protegida", refere Esperanza Martín Hernández.

Um protocolo estará a ser ultimado “em contra-relógio” para tentar “sistematizar” a acção do Estado à medida que a escassez hídrica vai desnudando novos sítios arqueológicos. Ángel Villa disse ao El País que o documento deverá estar concluído no final deste ano.

“Se se trata de património imóvel, estes serão consolidados para que a água não os danifique, como foi feito há dois anos em Guadalperal, ou serão acompanhadas as subidas e as descidas dos níveis das águas. No caso do património móvel, serão levados ao Instituto do Património Cultural de Espanha para serem restaurados e, posteriormente, depositados em museus, como aconteceu na albufeira de Valdecañas”, refere o coordenador do Plano Nacional de Arqueologia de Espanha, em declarações ao El País.

No caso do dólmen de Guadalperal, o projecto nasceu devido à “pressão mediática” à volta de uma alegada “descoberta” do monumento, conta Primitiva Ramírez ao PÚBLICO. Os cerca de 100 menires que compõem uma forma oval, alguns tão altos como um adulto – podem ir até aos 1,80 metros –, já haviam sido descritos por arqueólogos na década de 1920, muito antes da construção da barragem de Valdecañas, iniciada em 1957 e concluída em 1963.

“A verdade é que o dólmen já havia sido escavado e divulgado no século XX, e não se encontrou nenhuma descoberta [com a seca]. Mas em resposta à preocupação com este património submerso, surgiu a oportunidade de abraçar um projecto arqueológico com três grandes objectivos”, afirma a professora da Universidade de Alcalá de Henares.

A primeira ambição foi elaborar um inventário dos locais submersos pela água do Tejo, recorrendo a dados extraídos de mapas arqueológicos, referências historiográficas, fotografias aéreas anteriores à construção da albufeira e ainda informação obtida com tecnologia LiDAR (de Light Detection and Ranging, ou, em português, Detecção de Luz e Variação). Trata-se de um sistema de mapeamento por laser capaz de produzir imagens que, durante os longos períodos de estiagem de 2020 e 2021, foram verificadas em campo pelos arqueólogos.

A dupla também quis determinar se o Guadalperal foi o único megálito subaquático nesta parte da albufeira. “Noutros sectores, tivemos referências a mais monumentos megalíticos, tanto a oeste, no caso de Garrovillas, quanto para o interior, no caso do dólmen de Navalcán e outros na província de Toledo”, precisa a arqueóloga.

Os cientistas também quiseram, face à desinformação que paira sobre a alegada “descoberta” do dólmen, estabelecer a biografia do monumento de Guadalperal desde a construção. Este estudo detalhado inclui desde a documentação inicial na década de 1920, por Obermaier, até aos inícios dos anos 1990, quando emergiu e foi reconstruída pela equipa da Universidade de Alcalá. Neste momento, o sítio arqueológico está a passar por uma acção de conservação, que visa combater a erosão.

“A arqueologia é uma ciência necessária para o estudo do presente e do futuro – não apenas pelo passado”, alerta a professora espanhola. Primitiva Ramírez sublinha que, numa altura em que o planeta enfrenta fenómenos naturais extremos, “nenhuma decisão realista sobre mudança climática pode ser independente da ciência” – incluindo as ciências arqueológicas.

“O projecto em que colaboramos é um dos poucos que foram realizados em resposta ao problema patrimonial da seca nos últimos anos, através de um acordo entre diferentes entidades. Os resultados abrem um caminho muito interessante em que a política, que é a gestão das questões que envolvem a população, deve estar em sintonia com especialistas de diversas áreas, para tratar de mecanismos úteis ao aprimoramento de abordagens para as mudanças climáticas”, conclui a arqueóloga.

Para Esperanza Martín Hernández a questão é um pouco mais complexa. Por um lado, é óbvio que a seca tem sido muito útil para o desenvolvimento da investigação que faz. "Nos últimos três anos, calculo que tenha registado mais de uma centena de novas jazidas devido à facilidade de detecção de estruturas no subsolo por secagem diferencial." Porém, lamenta: "Não posso considerá-la positiva."

E justifica: "Em breve começaremos a trabalhar numa jazida cuja colheita murchou por falta de água, arruinando o agricultor. Agora a Primavera é como um segundo Verão: o solo está mais seco, podemos utilizar mais facilmente o georadar, podemos detectar mais facilmente as jazidas por prospecção aérea, mas continua a ser uma coisa terrível, o planeta está a morrer."