“A transição é o processo de transformação para o mundo em que ansiamos viver”

Eleita recentemente para a co-liderança da Rede da Transição – Transition Network, Filipa Pimentel participou este mês no lançamento do Centro do Clima e do movimento Póvoa em Transição.

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Filipa Pimentel Nelson Garrido
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Filipa Pimentel, de 50 anos, cresceu entre Castelo Branco e Arouca, onde passou parte da infância, com um avô médico e ecologista e uma avó muito ligada aos ciclos da terra e à gestão da quinta da família, que deixaram marcas na sua formação pessoal. Sempre “com um pé na terra”, depois de se especializar em ecologia florestal, deixou a investigação académica e mudou-se para Bruxelas, na Bélgica, cidade onde tem vivido.

Fez um estágio na Direcção-Geral do Ambiente, passou pela Greenpeace, como conselheira europeia para a área das florestas, biodiversidade e clima, foi conselheira política do Comité Económico Social Europeu, na área da sustentabilidade e do direito do consumidor, antes de, durante a crise que pôs Portugal sob tutela da troika, se ligar à Rede para a Transição.

Teve, assume, uma “epifania” quando tomou contacto com o movimento fundado em Totnes, Inglaterra, na primeira década deste século, que procura reimaginar e reconstruir o mundo, comunidade a comunidade, para chegar a um futuro menos dependente de carbono e socialmente mais justo.

O que é o Movimento da Transição?
A transição é o processo de transformação do contexto, a passagem do mundo que temos agora para aquele em que ansiamos viver. A palavra não nos pertence. Muita gente a usa para diferentes situações. No nosso caso, estamos a falar de uma mudança de paradigma, ou de sistema.

Este é um movimento voltado para a acção local, em que cada comunidade se rege por um modelo muito próprio, participativo, que aposta numa estratégia de mudança à escala humana, individual e de grupo. Os estudos indicam que em comunidade é possível desenvolver acções transformadoras, regeneradoras, no sentido de criar sociedades mais justas e uma resiliência local, essa capacidade de resistir a choques externos. Não somos resilientes quando apostamos numa economia de monocultura, como a do turismo, ou quando dependemos apenas de bens que nos chegam de longe, por exemplo.

É um movimento que apela ao poder da proximidade, da economia às relações sociais?
Sim. Procuramos criar comunidades que experimentam coisas, e que passem a ter do seu lado as ferramentas necessárias para uma mudança à qual o nosso sistema actual resiste. Temos de pensar de outras maneiras, de criar uma cultura humana saudável, regeneradora de nós próprios, das comunidades, da nossa economia, do ambiente, do solo. A palavra regeneração é, para nós, muito importante.

Podemos dizer que a outra palavra-chave é a “imaginação”, tema do mais recente livro de Rob Hopkins, um dos fundadores do movimento?
A imaginação é um primeiro passo. Não se trata de sonhar em ir à lua, pois estamos a falar de iniciativas de resiliência local, em contextos que conhecemos. Podemos, por exemplo, imaginar como será a nossa cidade sem carros, daqui a 40 anos. A que é que cheira? O que é que existe nas ruas e o que se faz nos espaços libertados? Onde estão as crianças, onde brincam? Explorar essas sensações é o primeiro convite. Como o Rob refere no livro, em muitos sítios a nossa sociedade desenvolveu a ideia de que a imaginação ou o sonho são muito perigosos, para quem deseja a manutenção do statu quo.

Para gerações e gerações de pessoas, a submissão, aceitar sem questionar, sem reflectir, tem sido uma forma de garantir a sobrevivência. Ele refere estudos que apontam para a forma como o nosso estilo de vida afecta a nossa capacidade de imaginar, até fisiologicamente, impedindo-nos de visualizar futuros que sejam diferentes deste presente em que vivemos.

O Rob vive em Totnes, Inglaterra, onde tudo isto começou. Tem uma cervejaria artesanal, que resulta de um encontro que tivemos há uns anos, em que nos desafiámos a imaginar como poderia ser o comércio de rua numa cidade sem nome. Esse foi o sonho dele, e concretizou-o. Ele foi o iniciador, o visionário que trouxe a chama. Era professor de permacultura, na Irlanda, e um dia pediu aos alunos que fizessem o exercício de tentar aplicar os princípios da permacultura à sociedade. Ficou tão inspirado com esse exercício que veio para Totnes e desafiou outras pessoas a fazer o mesmo.

Qual é o papel dele na organização, hoje em dia?
O grupo de Totnes é pioneiro deste movimento em crescimento e, quando ele atinge um grau de complexidade, o Rob começou a ter outros papéis. A Rede de Transição não é uma organização horizontal, mas também não é vertical. Organizamo-nos em círculos e vamos mudando de papéis, como acontece comigo. O Rob, não sendo o líder da organização, tem um papel que nunca há-de deixar de ter, o de fonte, o de grande comunicador e contador de histórias. Trabalhamos juntos, mas não está ligado às questões operacionais.

Ele amplifica o Movimento da Transição, mas traz muito mais do que isso, pela forma como pensa. O livro dele, From What is to What if [Do Que É ao Que Poderia Ser], está traduzido em francês, também, e teve bom acolhimento. O Rob é muito conhecido em França por ter participado no documentário Demain (2015). Estamos a negociar os direitos com a editora, para uma tradução da sua obra para português. Se acontecer, o que gostava mesmo era de fazer uma tournée em Portugal, com o Rob, a apresentar o livro, mas também a fazer formação sobre a importância do uso da imaginação para fazermos a mudança.

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Filipa Pimentel Nelson Garrido

Fala-se muito, hoje, de uma transição para uma economia pós-carbónica. Mas, na vossa perspectiva, a transição não pode ser apenas económica.
Não. A transição abrange tudo, e é desde logo um processo interior. Mas se quisermos ter essa reflexão, a economia é tudo, e não apenas sobre compra e venda de bens e serviços. A forma como gerimos a nossa casa, como nos alimentamos, como usamos o tempo é economia. O Movimento da Transição é construído de baixo para cima, e cada comunidade decide quais são as áreas a que é preciso dar prioridade para melhorar o lugar onde vive. Pode ser a alimentação, a energia, os transportes, ou outra. O que temos é uma rede que as liga, que as apoia, que partilha essas experiências locais, que conta as suas histórias, as suas aprendizagens, que as dissemina, juntando aos activistas as universidades, por exemplo.

Estão a dar poder às comunidades?
O que acontece muitas vezes é que os activistas locais sentem-se extremamente sozinhos, isolados. E isso é algo que nos retira energia, a sensação de estarmos num mundo em mudança, em contracorrente, deixa-nos de joelhos. Mas o facto de trabalharmos em conjunto, numa mesma lógica, apoiando-nos uns aos outros, com um movimento por detrás, torna tudo muito diferente. A mudança é muito complexa, não acontece do pé para a mão, até porque o próprio sistema que queremos mudar é muito resiliente. E cada contexto territorial tem a sua história, o seu contexto social.

Em Portugal, como está o movimento, comparando com o panorama internacional? O sítio da Transition Network sinaliza 24 iniciativas no continente.
Se olhar para os sítios a que pertenço, Bélgica e Portugal, vejo dois países com uma dimensão semelhante, que começaram ao mesmo tempo, mas que hoje apresentam realidades distintas. Em Portugal, ligadas à rede temos mais ou menos as mesmas iniciativas que no início (pode haver outras que não conheçamos), enquanto na Bélgica que fala francês, no equivalente a metade da nossa população, são cerca de 170, algumas delas com grande impacto nas respectivas comunidades.

E que motivos encontra para essa diferença?
Só posso reflectir e teorizar. Talvez tenha a ver com o nosso passado complicado. Sinto alguma falta de esperança. Vejo diferenças na expressão do activismo, que em Portugal é mais de protesto. Há dificuldade na passagem para a acção, na activação dos agentes de mudança. Se é preciso fazer alguma mudança, pedimos a alguém que faça, o que para mim pode querer dizer que achamos que não temos o poder para fazer o que é necessário.

Depois temos um activismo muito dependente da pessoa que lidera, do tipo: “Eu sigo, e só vou quando o líder for, dou a minha opinião, e depois vou para casa, que tenho a minha família.” E esta é outra coisa que vejo de diferente. A unidade de funcionamento dos grupos na Bélgica é a comunidade e, quando esta é activada, toda a família participa. Não temos o pai activista, e a mãe com as crianças em casa. Os activistas lá são os miúdos, são os avós, os primos.

Por cá, os poucos que aguentam de pé acabam de gatas, afectando a continuidade das iniciativas. O que estamos a tentar fazer em Portugal é desmontar isso – ao tentar desenvolver uma cultura em que cada um de nós reconhece o seu papel de agente de 'mudança', numa dinâmica profundamente colaborativa. Refiro-me a uma mudança, seja ela qual for, no seu contexto local, numa visão partilhada pela comunidade a que pertence.

Já temos exemplos fantásticos disso, como o da Transição São Luís, em Odemira, entre outros. Vale a pena ver o que fazem, em múltiplos domínios, saindo já da membrana do grupo da transição. Em Agosto, têm um Festival Comunitário de Artes e Artesanato, o Montras, que foi co-desenhado pelas pessoas da aldeia, velhos e novos, portugueses e estrangeiros que lá vivem, a tentar reagir à crise no comércio local.

E como é que avaliam o lançamento do movimento Póvoa de Varzim em Transição, apoiado pelo município e que terá como motor um organismo que este financia, o Centro do Clima, apresentado também este mês?
Nesta necessidade de experimentar a mudança a todos os níveis, em todos os sectores, com várias expressões, o elo entre o poder local e a iniciativa cidadã é fundamental se trouxer, como traz, recursos para fazer isto acontecer.

Em Portugal, já temos também o Famalicão em Transição, caso de estudo da rede MiT ​ Municipalities in Transition, e temos também Telheiras em Transição, ao nível de freguesia, em Lisboa. Mas é a primeira vez que vemos uma ligação entre um município, gente da comunidade e um órgão independente, o Centro do Clima, com recursos e profissionais dedicados e a coordenação do Pedro Macedo, um activista social que estudou profundamente estes temas e fez parte do MiT. Vou levar esta história para Bruxelas, na expectativa de que daqui saiam aprendizagens que possamos disseminar pela Rede da Transição.

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