Calor extremo: Portugal ainda não aprovou mais protecção dos trabalhadores. Porquê?

A nossa legislação ainda não especifica protecção contra fenómenos extremos. Outros países já o fizeram. Depois do chumbo de uma proposta do PAN, o BE apresenta projecto de lei esta sexta-feira.

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Actual legislação não é clara sobre a protecção dos trabalhadores fora de portas, como os da construção civil ou agricultura Gabrijelagal/GettyImages
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O Governo italiano aprovou esta semana um decreto para ajudar empresas agrícolas e de construção a manter em casa os trabalhadores durante alturas de calor extremo. Espanha também já anunciou que vai proibir alguns trabalhos ao ar livre durante condições de calor extremo. Nos EUA também se promete mais e melhor protecção aos trabalhadores durante estas alturas extraordinárias. Em Portugal? O PAN apresentou uma proposta que foi chumbada e esta sexta-feira o BE avança com um projecto de lei para defender os trabalhadores em Portugal durante temperaturas extremas.

A adaptação às alterações climáticas é uma dimensão que fica muitas vezes para segundo plano no palco político, numa altura em que o foco está muitas vezes na mitigação das emissões e na aposta em energias renováveis. No entanto, bastando apenas olhar para o caos climático que se vive este Verão da Europa, a preparação do território (e das populações) para um clima em mudança vertiginosa é cada vez mais urgente, e isso também passará por limitar o trabalho em condições de temperaturas extremas. Será que estamos a proteger os trabalhadores de um clima cada vez mais quente e imprevisível?

Para responder a esta questão, o Bloco de Esquerda apresenta esta sexta-feira um projecto de lei para rever o Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho, de forma a incluir as “actividades executadas no exterior que envolvam esforço físico e exposição a fenómenos meteorológicos adversos, incluindo temperaturas extremas” na lista de actividades ou trabalhos de risco elevado.

O projecto de lei do BE não é o primeiro sobre esta matéria a chegar à Assembleia da República. Em Maio, uma proposta do PAN para adaptar a legislação laboral à realidade dos fenómenos climáticos extremos foi apresentada à AR, mas contou apenas com os votos a favor do Bloco, PCP e Livre, com um chumbo do PS, PSD, Chega e Iniciativa Liberal.

Alguns países, como o exemplo recente de Espanha, estão a tomar medidas para limitar o trabalho em condições extremas. Nos EUA, o Presidente, Joe Biden, anunciou esta quinta-feira medidas para proteger os trabalhadores do calor extremo. Biden deu instruções ao Departamento do Trabalho para aumentar a fiscalização dos riscos de calor no local de trabalho, por exemplo, aumentando as inspecções nos locais de construção e agricultura, e para emitir alertas de perigo que informem os empregadores das suas responsabilidades e os trabalhadores dos seus direitos durante o calor extremo.

Em Portugal, a Constituição da República determina o direito à vida e à integridade física, assim como à protecção da saúde. A nível laboral, apenas o DL 243/86 de 20/08 estabelece limites de temperatura máxima, que se aplicam ao comércio, escritórios e serviços. A temperatura média nestes locais de trabalho (em espaços fechados) deve estar entre os 18 e os 25 graus Celsius.

Menos clara é a protecção dos trabalhadores que trabalham fora de portas, como os da construção civil, agricultura ou higiene urbana, mas também em trabalhos dentro de armazéns ou fábricas, perante fenómenos extremos de calor (ou frio).

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Imagem de calor por infravermelhos de um trabalhador de escritório sentado à secretária. A nível laboral, em Portugal apenas o DL 243/86 de 20/08 estabelece limites de temperatura máxima, que se aplicam ao comércio, escritórios e serviços Monty Rakusen/GettyImages

Normas “demasiado genéricas”

Para os sindicatos, há ainda claras dificuldades de garantir o cumprimento da lei. A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), afirma a dirigente da comissão executiva da CGTP, responsável pela área do Emprego, Andrea Araújo, “debate-se com falta de meios, humanos e materiais”, sem conseguir garantir “um número suficiente de técnicos de segurança e saúde ao serviço nas várias delegações regionais”.

Além disso, a regulamentação actual é insuficiente. “As normas são demasiado genéricas quer quanto aos limites máximos relativos às temperaturas ambientes, quer quanto às prescrições a adoptar relativamente aos sectores e postos de trabalho sujeitos a temperaturas elevadas ou em trabalhos ao ar livre”, nota a dirigente, numa resposta por email.

Onde poderia ir mais longe a legislação? “Estabelecer requisitos ao nível de pausas, jornadas de trabalho mais curtas, intervalos para recuperação, regras relativas ao fornecimento de líquidos, no caso de exposição ao calor. O mesmo se refere aos equipamentos de protecção individual”, diz Andrea Araújo.

Nova realidade, nova protecção

Para Inês de Sousa Real, deputada do PAN, a adaptação dos horários de trabalho ao que possam ser horas extremas de calor é “essencial não apenas no futuro, mas também no presente”. Em Espanha, relembra, a lei surgiu no seguimento da morte de um trabalhador. “A proposta do PAN foi rejeitada, curiosamente, com votos contra dos que se dizem defensores do mundo rural”, lamenta a deputada.

Já a deputada Isabel Pires, do Bloco de Esquerda, considera óbvia a “necessidade extra de protecção durante ondas de calor”. Numa altura em que as ondas de calor são cada vez mais frequentes e intensas, em particular na Europa, o continente que mais aquece no mundo, “temos que adaptar a protecção existente para trabalhadores” perante problemas que “antes não se colocavam assim”.

No capítulo da legislação sobre as actividades proibidas ou condicionadas (como a exposição a agentes químicos), o Bloco quer acrescentar a exposição a fenómenos meteorológicos adversos com impacto directo na prestação de trabalho, proibindo ou condicionando “actividades que se realizem no exterior, ou em espaços que não se encontrem totalmente vedados, que envolvam esforço físico e exposição a fenómenos meteorológicos adversos, incluindo temperaturas extremas”.

“Soluções realistas”

As opiniões não são unânimes sobre como e quando actuar. Da parte do Partido Socialista — que votou contra a proposta do PAN —, não está previsto, por agora, nenhum projecto de lei nesta matéria. “Neste momento, já existem disposições no código de trabalho que permitem fazer face a condições extremas”, considera o deputado socialista Tiago Barbosa Ribeiro. “Dito isto, há sempre uma reflexão que pode ser feita. A reflexão sobre esta matéria é sempre inacabada”, sublinha.

O timing político também não ajuda, no rescaldo do longo esforço de negociação da Agenda do Trabalho Digno e de Valorização dos Jovens no Mercado de Trabalho, que foi aprovada no início deste ano. Depois do grande pacote de alteração ao Código do Trabalho, o deputado considera difícil “estar a reabrir matérias laborais que implicam negociação”. Além disso, acrescenta, não têm tido “nenhum tipo de reivindicação sobre essa matéria”. Entre os parceiros sociais ouvidos ao longo da negociação da Agenda do Trabalho Digno, “essa não foi uma matéria que tenha sido suscitada”.

As queixas, contudo, chegam aos sindicatos. Andrea Araújo, da CGTP, explica que as queixas por condições precárias devido a temperaturas extremas chegam “com alguma frequência” aos sindicatos, em particular nos períodos do ano em que se fazem sentir as temperaturas mais extremas (tanto de calor como de frio). Também a deputada Isabel Pires, do BE, conta que nos últimos meses têm recebido contactos de trabalhadores que dão conta da dificuldade de prestar trabalho, em particular na agricultura. “Não têm mecanismos para se protegerem”, alerta.

Tiago Barbosa Ribeiro volta a sublinhar que o PS “não fecha a porta a uma abordagem nesta matéria”. O grupo parlamentar socialista, diz, tem vindo a reflectir sobre as consequências das alterações climáticas e, no âmbito da Comissão do Trabalho da AR em particular, “de que forma é que a legislação comparada europeia tem vindo a evoluir”, no sentido de encontrar “soluções realistas”.

Podemos incluir o que quisermos na lei, a dificuldade é procurar que o que se escreve seja cumprido na realidade”, nota ainda Tiago Barbosa Ribeiro. “Neste momento é importante fazer as coisas com cabeça, tronco e membros. É preciso traduzir as boas intenções em boas leis”, sublinha o socialista.

“A realidade dá forma a essa necessidade”

Porquê então, perguntamos à deputada do Bloco, acrescentar mais legislação sobre esta matéria, quando, pelo menos em teoria, os trabalhadores estão legalmente protegidos do trabalho em condições extremas?

Isabel Pires já conhece o argumento, mas responde que em várias situações ficou provado que “era preciso efectivamente mais legislação para proteger melhor os trabalhadores”. Quando se começou a discutir a realidade do teletrabalho, por exemplo, a legislação já existia, mas “a verdade é que a situação era muito diferente”.

“Apesar de já haver mecanismos, estamos perante fenómenos extremos que não tínhamos há uns anos”, sublinha a deputada. “Vamos começar a ter, sem qualquer forma de resolução, pessoas a trabalhar em condições cada vez mais extremas. Não pode desresponsabilizar-nos, temos que ter formas de proteger os trabalhadores.” Afinal, garantir uma transição justa também é proteger os trabalhadores nestas condições num clima cada vez mais imprevisível.

A deputada bloquista lamenta que, em áreas como o trabalho mas também coesão territorial, ordenamento do território ou mesmo na própria Comissão do Ambiente, o ritmo da política não acompanhe a urgência das alterações climáticas. “Essas adaptações às vezes demoram tempo, em vez de estarmos a acelerar o processo”.

“Os avanços fazem-se sempre assim. À primeira, à segunda, à terceira, se calhar não conseguimos. Mas a realidade dá forma a essa necessidade”, espera.