Julho será o mês mais quente de sempre: “A acção climática não é um luxo, mas uma obrigação”

O programa europeu de monitorização do clima Copérnico e a Organização Mundial Meteorológica divulgaram um comunicado que já nos diz que “Julho de 2023 deverá ser o mês mais quente de que há registo”.

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"Se não houver uma mini-Idade do Gelo nos próximos dias, Julho de 2023 vai bater recordes em todos os sectores", disse António Guterres Reuters/FAYAZ AZIZ
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É verdade que Julho ainda não chegou ao fim, mas desta vez parece que já é possível baixar o pano antes da senhora cantar. Num comunicado conjunto, o programa europeu de monitorização do clima Copérnico e a Organização Meteorológica Mundial (OMM) anunciam, ainda a cerca de cinco dias do fim deste mês, que já têm dados suficientes para avançar que “Julho de 2023 deverá ser o mês mais quente de que há registo”.

PÚBLICO - Temperatura global diária do ar à superfície (em graus Celsius) de 1 de Janeiro de 1940 a 23 de Julho de 2023, representada como séries cronológicas para cada ano. 2023 e 2016 são apresentados com linhas grossas sombreadas a vermelho vivo e vermelho escuro, respectivamente
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Temperatura global diária do ar à superfície (em graus Celsius) de 1 de Janeiro de 1940 a 23 de Julho de 2023, representada como séries cronológicas para cada ano. 2023 e 2016 são apresentados com linhas grossas sombreadas a vermelho vivo e vermelho escuro, respectivamente

"Não precisamos de esperar pelo fim do mês para saber isto. Se não houver uma mini-Idade do Gelo nos próximos dias, Julho de 2023 vai bater recordes em todos os sectores", comentou o secretário-geral da ONU, António Guterres, em Nova Iorque. "As alterações climáticas estão aqui. São aterradoras. E é apenas o início", disse aos jornalistas, acrescentando que "a era da ebulição global chegou".

Não se trata apenas do Julho mais quente de sempre — é também o mês mais quente desde que há registos, assinalam o Copérnico e a OMM. “As primeiras três semanas de Julho foram o período de três semanas mais quente de que há registo. A temperatura média global ultrapassou temporariamente o limiar de 1,5 graus Celsius acima do nível pré-industrial durante a primeira e a terceira semanas do mês”, assinala ainda o comunicado divulgado esta quinta-feira. Não é a primeira vez que passamos a barreira, mas é mais um infeliz marco na história da Terra.

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Há um planeta inteiro a sofrer os efeitos de uma evidente crise climática que tem sido agravada ano após ano pela acção humana (com as emissões de gases com efeito de estufa e outras agressões) e que este ano conta com um aliado que pode aumentar ainda mais a tragédia: o fenómeno El Niño. O mundo enfrentou o caos climático em Julho e o comunicado divulgado esta quinta-feira pelo Copérnico e a OMM reforça esta ideia com factos e dados.

“No dia 6 de Julho, a média diária da temperatura média global do ar à superfície ultrapassou o recorde estabelecido em Agosto de 2016, tornando-se o dia mais quente de que há registo, logo seguido dos dias 5 e 7 de Julho”, referem os cientistas. A base de dados ERA5, do serviço europeu de Monitorização das Alterações Climáticas (C3S) do Copérnico, confirma ainda que “o mês está a caminho de ser o Julho e o mês mais quente de que há registo”.

Citado no comunicado, o secretário-geral da OMM, Petteri Taalas, é claro: “As condições meteorológicas extremas que afectaram muitos milhões de pessoas em Julho são, infelizmente, a dura realidade das alterações climáticas e um prenúncio do futuro. A necessidade de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa é mais urgente do que nunca. A acção climática não é um luxo, mas uma obrigação.”

Carlo Buontempo, director do Serviço Copérnico para as Alterações Climáticas (C3S) do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo (ECMWF, na sigla em inglês), acrescenta: “As temperaturas recordes fazem parte da tendência de aumento drástico das temperaturas globais. As emissões antropogénicas são, em última análise, o principal motor deste aumento das temperaturas. As previsões sazonais do C3S indicam que, nas zonas terrestres, as temperaturas deverão estar muito acima da média, excedendo o percentil 80 da climatologia para a época do ano”.

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Este invulgar registo de temperaturas está “relacionado com ondas de calor em grandes partes da América do Norte, Ásia e Europa, que, juntamente com incêndios florestais em países como o Canadá e a Grécia, tiveram grandes impactos na saúde das pessoas, no ambiente e nas economias”, sublinha o comunicado do Copérnico e da OMM.

E se em terra firme o cenário é mau, não adianta mergulhar a cabeça debaixo de água. “Desde Maio, a temperatura média global da superfície do mar tem estado muito acima dos valores anteriormente observados para esta época do ano, contribuindo para o Julho excepcionalmente quente”, confirma a nota de imprensa.

Um estudo publicado esta quarta-feira na revista Nature já nos tinha deixado de sobressalto com a hipótese de o sistema de circulação do Atlântico entrar em colapso em breve, no pior dos cenários já em 2025, o que trará consequências irreversíveis para o clima na Terra.

Esta quinta-feira, o comunicado dos dois importantes organismos dedicados ao clima reforça a inevitável conclusão: “É extremamente provável que Julho de 2023 seja o Julho mais quente e também o mês mais quente de que há registo, na sequência do Junho mais quente de que há registo.” De acordo com os dados do ERA5, o anterior mês de Julho mais quente de que há registo foi em 2019.

Os dados completos sobre Julho só serão publicados a 8 de Agosto, por isso, daqui a poucos dias vamos voltar a falar neste marco na história já com a informação oficial.

Os 1,5 graus que nos atormentam

“A OMM prevê que existe uma probabilidade de 98% de que pelo menos um dos próximos cinco anos seja o mais quente de que há registo e uma probabilidade de 66% de exceder temporariamente 1,5 graus Celsius acima da média de 1850-1900 durante pelo menos um dos cinco anos”, avança ainda o comunicado.

Atingir este limite num determinado momento é grave e, infelizmente, está a tornar-se cada vez mais frequente, mas isso não quer dizer que tudo está perdido e já não há nada a fazer. “Isto não significa que excederemos permanentemente o nível de 1,5°C especificado no Acordo de Paris, que se refere ao aquecimento a longo prazo, durante muitos anos”, esclarecem os cientistas no comunicado.

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Em Maio deste ano, a OMM já avisava: “Os próximos cinco anos podem ser os mais quentes desde que há registo. Pouco a pouco, vamos começar a ultrapassar os limites do Acordo de Paris.” Num comunicado que se centrava na “ajuda” que o El Niño poderia dar na subida dos termómetros, os cientistas acrescentaram: “Ultrapassar, ainda que temporariamente, o limite de 1,5 graus acima da temperatura que a Terra tinha antes da Revolução Industrial pode dar-nos uma antevisão daquilo que nos espera se passarmos de forma definitiva esse limiar.”

É difícil encontrar alguém que tenha estado minimamente atento às notícias dos últimos dias (diria até semanas) que desvalorize esta perspectiva de estarmos perante uma “antevisão” do que nos espera nos próximos anos. Foram várias as notícias publicadas sobre recordes de temperatura da China aos EUA, passando pela Europa, e sobre vagas de calor, incêndios implacáveis e inundações. Até agora, Portugal foi poupado do efeito devastador de uma onda de calor e temos isso a agradecer ao anticiclone dos Açores.

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Os recordes têm caído uns atrás dos outros. Ninguém pode ficar indiferente às notícias deste negro mês de Julho que mostram países como a Itália a debater-se com ondas de calor no Sul e tempestades no Norte ou com a Grécia com incêndios a devorarem as ilhas do mar Egeu, matando pessoas, destruindo casas e outros bens e expulsando milhares de turistas forçados a regressar a casa. Esta quinta-feira, as chamas na Grécia alastraram ao continente e mataram mais duas pessoas.

Em Novembro, Petteri Taalas também já nos dizia que evitar o patamar dos 1,5 graus Celsius seria muito difícil. Agora, atingimos (mais uma vez) a barreira dos 1,5 graus Celsius de temperatura média acima do nível pré-industrial, o limite que juntou os líderes do mundo em Paris no compromisso de que tudo se faria para não chegar aqui.

Não é a primeira vez que passamos o limite de 1,5ºC acima da temperatura média dos valores de referência (entre 1850 e 1900). Essa barreira tem sido pontualmente ultrapassada desde 2015, mas sempre entre Dezembro e Abril, uma vez no início de Maio. Ultrapassámos em Junho, e também no início de Março a temperatura média à superfície passou o limite de 1,5ºC — e voltámos a ultrapassar agora.

A primeira vez que atingimos este marco foi em Dezembro de 2015, precisamente nos dias em que estava a ser negociado o Acordo de Paris. A indesejada estreia coincidiu também com um ano com a influência do fenómeno El Niño [tal como nos encontramos agora], que exacerbou as temperaturas, com o planeta a ultrapassar o limite dos 1,5ºC várias vezes durante os primeiros meses de 2016, até à Primavera. O susto repetiu-se em 2020. Este ano de 2023 soma já várias ultrapassagens desse limite.

A resposta inconveniente

Muitas vezes, quando pedimos a um cientista que nos fale sobre o futuro e arrisque com previsões sobre os próximos anos, recebemos a resposta pouco concreta “depende”. Uma frase com a dúvida que a palavra “depende” arrasta não dá um bom título. Mas é, de facto, a resposta mais verdadeira que existe. Porque depende do que fizermos. Porque depende de nós.

Ultrapassar esta fasquia num determinado momento preso no tempo é uma péssima notícia e o mês de Julho de 2023 na Terra vai ficar marcado no calendário da nossa história, mas pode não ser um mal totalmente irreversível e irremediável. Lá está, depende.

Num texto divulgado esta quarta-feira na The New Yorker, o escritor e ambientalista norte-americano Bill McKibben fala das ondas de calor que estão precisamente a varrer a nossa história. A introdução ao texto é esclarecedora: “Este Verão escaldante está a levar-nos para fora do tempo humano.” E escreve ainda: “Há história e há História, e é possível que a segunda seja o que estamos a viver neste Verão de temperaturas nunca antes registadas pelos humanos.”

Numa entrevista ao Azul em Maio de 2022, McKibben defendia que o caminho a seguir na acção climática passa por persuadir o sector financeiro a agir. “Na acção climática, Wall Street pode ser mais eficaz do que a ONU”, disse. As acções individuais são meritórias, afirmou ainda o fundador da campanha 350.org, mas não conseguiremos atingir as metas do Acordo de Paris apenas reciclando plásticos e usando carros eléctricos.

Numa outra entrevista mais recente ao PÚBLICO, Thelma Krug, uma matemática brasileira, especialista em métodos de observação da Terra e que na altura ocupava o cargo de vice-presidente do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), também deixou o aviso sobre os 1,5 graus que nos atormentam.

A cientista que fez parte do grupo principal de investigadores e que escreveu o resumo para os decisores políticos do relatório publicado em Março pelo IPCC explicava (em Março deste ano) que o painel “deixa claro que a maior parte dos cenários que foram estudados indicam que pode haver o chamado “overshoot” [elevação temporária dessa temperatura média acima de 1,5ºC]”.

E completava: “Mesmo que o aumento [acima de 1,5 graus] seja temporário, vão crescer os riscos de impactos das alterações climáticas. Inclusivamente, alguns desses impactos podem tornar-se quase irreversíveis, dependendo do tamanho do ‘overshoot’. Há sempre implicações, mesmo que consigamos trazer a temperatura de volta para 1,5 graus.”

Os relatórios do IPCC têm sido claros: a meta de não ultrapassar 1,5 graus já está fora do nosso alcance, a não ser que haja profundas, rápidas e sustentáveis reduções de gases com efeito de estufa, em todos os sectores. Mais uma vez, é aqui que mora o inconveniente “depende” que responde à pergunta sobre o futuro que nos espera.

“Sabemos que as emissões já deveriam estar a decrescer e não estão. Há necessidade de um grande corte, praticamente pela metade, até 2030 [43%] e mesmo isso não vai ser suficiente”, dizia-nos ainda Thelma Krug em Março. Vamos conseguir? Depende.


Notícia actualizada com declarações de António Guterres, secretário-geral da ONU