O que aconteceu em 35 anos de IPCC?

Quem olha para os indicadores dos últimos 35 anos, pode concluir que os resultados alcançados estão muito aquém do que seria esperado num longo mandato de uma instituição tão importante como o IPCC.

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A propósito das recentes notícias sobre extremos climáticos e dos recentes acontecimentos de reuniões internacionais (em particular do G20), eventos e visitas diplomáticas, como a do representante dos Estados Unidos (EUA) à China (os dois maiores emissores de carbono da actualidade) e sua importância no contexto actual das metas de descarbonização, é pertinente fazer e publicar esta análise sobre o contributo do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês).

Em Novembro de 1988, a Organização Mundial de Meteorologia (OMM) e o Programa Ambiental das Nações Unidas (UNEP) criaram o IPCC , perfazendo 35 anos este ano, por altura da 28ª Conferência das Partes (COP28), que vai decorrer no Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. O objectivo principal do IPCC [que elegeu nesta quarta-feira o escocês Jim Skea para liderar os trabalhos do sétimo ciclo de avaliações produzidas pelo organismo] é facultar aos governos dos países-membros informações científicas, em todos os níveis, que possam ser usadas no desenvolvimento das respectivas políticas de acção climática.

Os relatórios técnico-científicos do IPCC passaram então a ser uma contribuição importante para as negociações internacionais sobre alterações climáticas. O IPCC é uma organização de governos membros das Nações Unidas ou da OMM, tendo actualmente 195 membros. Em 2007, o IPCC foi laureado, juntamente com o vice-presidente dos EUA, Al Gore, com o Prémio Nobel da Paz e, em 2022, juntamente com a Plataforma Intergovernamental das Ciência-Política sobre Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas (IPBES, na sigla em inglês), com o prémio Gulbenkian para a Humanidade.

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Curva de aquecimento global desde 1880, relativamente à média de 1980-1910, e indicação de eventos históricos associados à mitigação climática DR

Passados quase 35 anos é, pois, altura de nos questionarmos sobre o que foi feito, o que se conseguiu em termos de acção climática e o que foi alcançado ao nível da mitigação e da descarbonização da economia mundial. Em 35 anos, foram realizadas 28 COP, incluindo já a deste ano no Dubai; foram produzidos seis Relatórios de Avaliação Climática (AR – Assessment Reports), tendo o último AR6 sido publicado no início deste ano; foram ainda produzidos 17 Relatórios Especiais, o último em 2019 sobre os oceanos e a criosfera no contexto das alterações climáticas; e ainda vários acordos, incluindo os de Quioto (1997) e de Paris (2015), os mais importantes.

Vejamos então como evoluíram nestes 35 anos, de entre outros, alguns indicadores climáticos importantes sobre os quais a missão e objectivo do IPCC e seus membros é o de controlo e mitigação (redução e não aumento):

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Curva de concentração de dióxido de carbono na atmosfera, dos últimos 800 mil anos NASA/DR
  • As emissões de dióxido de carbono de origem fóssil aumentaram 73%, das 21.7 para as 37 Gton/ano (Gton – giga-toneladas, correspondem a mil milhões de toneladas);
  • A concentração de dióxido de carbono na atmosfera aumentou 50% do aumento total verificado nos últimos 200 anos, correspondente a 70 ppm (partes por milhão), das 350 para as 420 ppm;
  • A temperatura média global do planeta à superfície aumentou 77% do total de aquecimento global desde o período pré-industrial, correspondendo 0.7 graus Celsius;
  • A temperatura média no Árctico aumentou 2.8 graus Celsius (quatro vezes mais a média do aquecimento global) e na Europa cerca de 1.5 graus Celsius (duas vezes mais);
  • O Nível Médio do Mar, em termos globais, subiu 11 centímetros, correspondendo a 50% da subida verificada nos últimos 100 anos;
  • A extensão mínima de gelo marinho no Árctico, que se verifica em meados de cada mês de Setembro, reduziu em média 50%, e o seu gelo perene (o gelo mais antigo que resiste ao verão e persiste por quatro ou mais anos) teve uma redução de 96%;
  • Os oceanos já absorveram mais de 250 Zettajoules (250 vezes 10 levantado a 21 joules) de energia adicional devido ao efeito estufa dos gases libertados para a atmosfera (principalmente de dióxido de carbono, metano e óxido nitroso), o que equivale à energia libertada por 3.39 mil milhões de bombas atómicas de Hiroxima (de 16 mil toneladas de TNT), causando um aquecimento médio acumulado de 0.8 graus Celsius à superfície e de 0.25 graus Celsius na primeira camada dos 700 metros de profundidade.

Olhando para esta lista de indicadores e sua evolução, podemos concluir que os resultados alcançados estão muito aquém do que seria esperado num mandato de 35 anos de uma instituição tão importante como o IPCC, sob a régia das Nações Unidas e com 195 países-membros. Isto não significa que a culpa seja exclusiva do IPCC e dos seus técnicos e cientistas. Em todos os acordos, todos (ou quase todos) os países-membros se comprometeram a um conjunto de metas de descarbonização. Mas como são metas não vinculativas, tal como acontece com as contribuições nacionais de redução de carbono resultantes do Acordo de Paris de 2015, nenhum país é obrigado a cumprir o que promete, nem existe nenhum mecanismo sancionatório previsto para o incumprimento dessas metas.

As próprias projecções iniciais de aquecimento apresentadas nos anos 80, por exemplo por James Hansen, indicavam, no pior dos cenários, um aquecimento na ordem de 0.7 graus Celsius para a época actual de 2020, face à média entre 1951-1980. E o que está a ser registado (desde 2019) é um aquecimento de 0.9 graus Celsius em relação ao mesmo período (1951-1980), ou seja, estamos a viver uma realidade climática que é mais grave do que as piores projecções indicavam há 40 anos.

Vejamos agora a evolução, nos últimos 35 anos, de alguns indicadores socioeconómicos que funcionam como factores de forçamento antropogénico sobre os indicadores climáticos, por contribuírem para o aumento das emissões de gases com efeito estufa:

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Distribuição do mix de produção de Energia Primária consumida mundialmente
  • A população mundial cresceu mais de 57%, dos 5.1 mil milhões para 8 mil milhões de pessoas;
  • O produto bruto mundial será em 2023 cerca de 112.6 biliões de dólares, um aumento de 588% face aos 19.1 biliões de dólares em 1988, o que corresponde a um aumento do rendimento per capita dos 3.75 mil dólares/ano para os 13.9 mil dólares/ano (370% de aumento);
  • O consumo diário de petróleo aumentou cerca de 56%, dos 65 milhões para os cerca de 102 milhões de barris diários (previsão da Organização dos Países Exportadores de Petróleo);
  • O consume de Energia Primária a nível mundial aumentou 81%, dos 92.6 para os cerca de 167.8 milhões de GWh (em 2022, excluindo a Biomassa);
  • Contudo, o consumo anual de energia per capita aumentou apenas 16.7%, dos 18 para os 21 MWh/ano;
  • A percentagem da produção de energia primária de origem fóssil no mix energético global terá reduzido apenas uns 3 a 5%, dos 87% para os 82-84%. Já deveria estar na ordem dos 68% para se cumprir a meta de redução de 50% das emissões até 2030, do Acordo de Paris.

Esta lista de indicadores permite-nos observar a evolução da “suposta” descarbonização nestes últimos 35 anos, a partir do momento em que o mundo político (ou quase todo) e a humanidade se comprometeu e se responsabilizou a por em prática um conjunto de “medidas e acções” com o objectivo de mitigar as alterações climáticas e evitar que o aquecimento global ultrapasse o limiar (1.5 a 2 graus Celsius), para lá do qual a vida humana e a biodiversidade poderá ficar comprometida, em que a sociedade e a economia mundial sejam fortemente perturbadas, podendo mesmo conduzir a um colapso civilizacional.

Este é um conjunto de argumentos que habitualmente uso (de entre outros) para demonstrar o que tenho afirmado, nos dois artigos anteriores, de que o clima responde ao crescimento económico e não à vontade política.

Face ao que globalmente nos comprometemos, através de (quase) todos os líderes mundiais e políticos representantes no IPCC e nas Nações Unidas, e ainda, face ao rol de medidas e acções decididas e implementadas pelos governantes e decisores políticos, consubstanciadas no conhecimento científico desenvolvido e publicado nos Relatórios de Avaliação Climática, apenas podemos concluir que a “montanha pariu um rato”.

Contudo, quero deixar aqui a opinião expressa que não desvalorizo a importância e o papel do IPCC e de toda a comunidade científica, bem como, o esforço global que tem sido feito em prol da acção climática. Bem pelo contrário, pois sem esse esforço estaríamos certamente em muito pior situação, em termos dos impactos das alterações climáticas. O que defendo é que, o que é necessário fazer, para se alcançarem as metas desejadas, é muito, mas muito superior ao que tem sido feito, como ficou demonstrado no meu último artigo do dia 18 de Julho, através das taxas anuais necessárias à redução das emissões para se atingir a neutralidade carbónica até 2050.

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