A maior parte das roupas doadas a grandes cadeias de roupa, no âmbito de programas de reutilização e reciclagem, acabam “destruídas”, “abandonadas” em depósitos ou “encaminhadas para um destino incerto em África”. Esta é a conclusão de um relatório intitulado Take-Back Trickery (o truque da devolução). O documento, divulgado este domingo, resulta de uma investigação do grupo de pressão holandês Changing Markets Foundation.
“A nossa investigação revela como grandes marcas de moda, tais como H&M, C&A e Primark, estão a descartar roupas que, segundo prometeram, teriam direito a uma segunda vida. [Verificamos que] 52% das roupas doadas em perfeito estado acabam destruídas, abandonadas ou enviadas para países incapazes de lidar com a grande quantidade de roupas usadas da Europa”, explica ao PÚBLICO Urska Trunk, directora de campanha da Changing Markets Foundation.
A organização neerlandesa usou pequenos localizadores da marca Apple – os AirTags – para acompanhar, ao longo de 11 meses, o percurso de 21 peças de roupa em óptimas condições, nalguns casos até com etiquetas. Foram entregues a programas de recolha das marcas H&M, Zara, C&A, Primark, Nike, North Face, Uniqlo e M&S artigos como casacos, calças e jaquetas. As doações foram efectuadas, garantem, em lojas na Bélgica, França, Alemanha e Reino Unido. Também foi utilizado o envio pelo correio para o programa Boohoo.
Um par de calças doado à Marks & Spencer, por exemplo, terá sido descartado no prazo de uma semana. Já a parte de baixo de fato de treino entregue à C&A foi incinerada numa cimenteira, refere o relatório. Uma saia confiada à H&M, por sua vez, terá viajado quase 25 mil quilómetros até uma lixeira do Mali, onde os autores do documento acreditam que a peça terá sido descartada. Houve também peças enviadas para a Ucrânia, de acordo com a mesma fonte, à boleia de um afrouxamento das regras de importação devido à guerra.
Das 21 peças entregues a programas sustentáveis, apenas cinco itens foram reutilizados em países europeus ou revendidos em lojas de artigos em segunda mão. Urska Trunk disse ao PÚBLICO que estes dados mostram que os programas de recolha das grandes marcas não passam de “mais um truque de greenwashing”, uma forma de “enganar os consumidores fazendo-os acreditar que estão a fazer escolhas responsáveis”.
O relatório sublinha a contradição entre as promessas de sustentabilidade e o que realmente acontece às doações de têxteis. O documento nota, por exemplo, como marcas tais como C&A, H&M e North Face encorajam o consumidor a dar uma “segunda vida às roupas” e apoiar a economia circular, mas não asseguram mecanismos para que a promessa feita aos consumidores seja cumprida.
“A maioria dos programas promete explicitamente não descartar roupas que ainda podem ser usadas. Mas nenhuma das marcas nomeadas no relatório mantém registos públicos que esclareçam o destino das roupas que lhes são doadas. Em vez disso, as marcas repassam [as cargas doadas] para empresas especializadas em reutilização, reciclagem e disposição final”, refere a nota de imprensa.
Primark diz que alegações são enganosas
A Primark considera que tais alegações são “enganosas” e “imprecisas”, garantindo que a peça da marca que terá sido acompanhada pela Changing Markets não teve como destino um depósito industrial. Tratava-se de um hoodie, a parte de cima de um fato de treino cinza, com capuz.
“Não há nada que demonstre que o artigo de vestuário referido no esquema de retoma da Primark tenha sido deitado fora ou descartado. Aliás, o artigo (um hoodie) está actualmente no armazém de um revendedor de vestuário na Hungria e pronto para ser revendido”, refere, num e-mail enviado ao PÚBLICO pela empresa de comunicação que representa a marca em Portugal.
“O nosso programa de retoma é gerido pela Yellow Octopus, especialista em reciclagem de têxteis com uma política de não-descarte em aterros e, juntos, tomámos várias medidas para garantir que as roupas doadas através do programa são geridas de forma responsável. Temos certeza de que o hoodie foi tratado como deveria e está com um revendedor de roupas em Budapeste, na Hungria, pronto para ser vendido”, refere Lynne Walker, directora da Primark Care, a área da empresa dedicada à sustentabilidade, citada na nota enviada ao PÚBLICO.
UE quer reduzir descarte de têxteis
“O nosso relatório destaca-se como uma das investigações mais abrangentes sobre estratégias de marketing da fast fashion e práticas de gestão de fim de vida [dos produtos têxteis]. E o relatório revela uma tendência preocupante: a maioria das roupas usadas que entram nesses programas operados por retalhistas na Europa corre o risco de ser descartada, rasgada ou abandonada em armazéns. As nossas conclusões sublinham a necessidade urgente de legislação europeia capaz de resolver esse problema premente”, refere Urska Trunk.
A União Europeia está a envidar esforços para controlar e limitar o descarte de resíduos, “podendo tornar-se a primeira região do mundo a enfrentar a moda de consumo rápido”, refere a nota de imprensa da Changing Markets. Uma taxa de fim de vida poderá ser cobrada para cada artigo vendido, uma medida que procura limitar o descarte, mas, para a organização neerlandesa, continua a não impedir que roupas em boas condições acabem por ser trituradas ou esquecidas num armazém num local recôndito.
“A actual legislação proposta na União Europeia é a chave para transformar os programas de devolução na Europa. Embora o plano de cobrar uma taxa de fim de vida para cada item vendido seja um passo na direcção certa, é essencial que o Parlamento Europeu e os Estados-membros peçam metas obrigatórias de reutilização e reciclagem. Isso pode levar a indústria da moda a um futuro em que a reutilização se torne a norma e a reciclagem das fibras ganhe escala e maturidade comercial”, afirma Urska Trunk.
A Changing Markets defende também que as medidas europeias incluam um imposto sobre tecidos sintéticos e protocolos para tornar o design de roupas mais sustentável.
O relatório não se debruçou sobre o mercado português. Mas a Changing Markets acredita que as conclusões podem ser extrapoladas para a realidade nacional. “O baixo valor da maioria das roupas de fast fashion significa que a maioria das peças portuguesas usadas que entram em programas de devolução administrados por retalhistas provavelmente serão também destruídas, rasgadas ou deixadas em armazéns”, refere a organização.
Notícia actualizada a 24 de Julho, às 15h35, tendo sido incluída reacção da Primark.