A morte do cão, o fim da candura

O meu amigo, já com poucas forças, ainda me olhava com ternura. Alheio às maldades do mundo que se abatiam sobre mim. A sua inocência limpava-me.

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Megafone P3: A morte do cão, o fim da candura Jean Alves/Pexels
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Quis sair da minha vida por algumas horas e entrar noutra alma que fosse a menina bonita de pessoas adultas, preferentemente melhor do que eu, capaz de ser colo e casa, beleza e consolação. Mergulhei as mãos frias nos bolsos do casaco e pesquei com surpresa várias moedas e notas, que perfaziam o suficiente para algumas revistas e um maço de tabaco.

Talvez chegasse, também, para a compra de um isqueiro. Há mais de dois anos que não metia um cigarro entre os lábios, mas hoje tinha de voltar a dar fogo à minha boca de dragão quase extinto depois da luta. No quiosque, o meu nome escrito na capa de várias revistas cor-de-trampa.

Calúnias sobre a minha vida privada, nada que não tivesse consultado já nas edições digitais. Porém, queria deparar-me com a materialidade das ofensas, talvez por masoquismo ou apenas uma necessidade de confirmar algo concreto através das mãos, aquilo que agora sentiam a cabeça e o coração.

Comprei cigarros, três revistas e o dinheiro não chegou para o isqueiro. Tudo sempre com o rosto e os olhos apontados para o chão, não fosse o senhor do quiosque reconhecer-me. Tive de pedir ajuda ao primeiro transeunte fumante, e novamente o receio de ser identificada como o alvo das notícias.

Senti uma tontura da nicotina, mas continuei a marcha até à recente prisão domiciliária: a minha casa. Impedida de sair nos próximos dias graças às injúrias da imprensa, com receio de me cruzar com vizinhos e transeuntes que pudessem reconhecer-me, teria de permanecer entre as várias paredes que constituíam a minha prisão.

Aos trinta e quatro anos, conhecia, finalmente, os sentimentos de humilhação e vergonha. Comigo no cárcere, o cão doente, carcomido por uma doença que tanto afecta pessoas como animais, atacado por um inominável carcinoma. Ambos travávamos lutas em simultâneo, embora diferentes.

Estranhei não ser recebida pelo patudo agora macérrimo, mas que mantinha ainda, e sempre, um átimo de entusiasmo com o meu regresso a casa. Deixei de me interessar pelo folhear das revistas e o inequívoco masoquismo que o gesto acarretava, para procurar onde estaria o meu débil amigo de quatro patas.

No escritório, junto à minha secretária, o meu fiel companheiro parecia dormir debaixo da sua leitosa pelagem. Aproximei-me com o terror antecipado dos acontecimentos inevitáveis, e pude escutar a sua respiração. Fiz-lhe uma carícia na nuca e apontou imediatamente os seus olhos ternos na minha direcção.

O meu amigo, já com poucas forças, ainda me olhava com ternura. Alheio às maldades do mundo que se abatiam sobre mim. A sua inocência limpava-me. O amor que lhe tinha protegia-me. A morte do cão seria o fim da candura.

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