Português detido 19 dias na Turquia por “parecer gay

Miguel Álvaro, de 34 anos, foi de férias para a Turquia no final de Junho. Ao terceiro dia, foi preso em Istambul, depois de a polícia assumir que participaria numa marcha do mês do orgulho LGBTI+.

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Miguel Álvaro, de 34 anos, tem nacionalidade portuguesa e sul-africana DR
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Com o carimbo de mais de 40 países no passaporte, incluindo alguns em que a homossexualidade é ilegal e punida com pena de prisão ou de morte, foi na Turquia que Miguel Álvaro foi detido por "parecer gay". A "aparência" denunciou-o: foi a justificação da polícia para o algemar e manter preso durante 19 dias.

Aterrou a 23 de Junho na Turquia, onde ficaria quatro dias sozinho. São essas as viagens de que mais gosta: aquelas em que não depende de ninguém e tem liberdade total. Menos de 48 horas depois, no domingo, 25 de Junho, saiu do apartamento arrendado para ir almoçar. Havia ruas cortadas e dezenas de polícias no bairro onde estava, Taksim, em Istambul. Dirigiu-se aos agentes fardados para pedir indicações para Balat, outra zona turística.

Talvez a expressão facial, a postura, a voz, provavelmente os “calções e blusa mais curtos do que o habitual para um homem, mesmo com cores neutras”. Alguma dessas coisas fez com que um dos polícias ordenasse que fosse detido.

“Fui rodeado por vários polícias [oito, segundo se lembra]. Agarraram-me os braços e tentei libertar-me. Um deles bateu-me nas costelas, empurraram-me contra uma carrinha, bateram-me no ombro, que ficou a sangrar”, recorda, em entrevista ao P3. “Depois de cinco horas na carrinha da polícia, em que só me disseram para me calar e estar quieto, um deles explicou-me que tinha sido detido por causa da minha aparência. Pensaram que participaria numa marcha LGBTI+ não autorizada que ia acontecer ali perto por parecer gay. Estava no sítio errado à hora errada.”

Estavam convocadas para esse dia várias manifestações para assinalar o mês do orgulho LGBTI+.​ Só em Istambul foi detida mais de uma centena de pessoas. O Governo turco terá destacado milhares de agentes das forças de segurança para impedir que se realizassem, à semelhança do que tem acontecido em anos passados, inclusive com recurso à força, gás pimenta e canhões de água.

Depois de 13 horas dentro da carrinha da polícia — que foi enchendo até todos os lugares estarem ocupados —, Miguel Álvaro, de 34 anos, foi para a esquadra de Taksim, sem poder contactar ninguém. Com ele foram detidos mais dois homens estrangeiros (um russo e outro iraniano) e os três fariam o mesmo caminho durante os 19 dias seguintes. De Taksim foram levados para o centro de detenção de imigrantes de Tuzla, ainda em Istambul, conhecido por problemas de sobrelotação, violência e más condições sanitárias.

Sempre que eram chamados, era-lhes garantido que seriam libertados — ou seja, deportados para o país de origem —, e por isso deviam colaborar. Deixaram as celas de Tuzla para entrar num autocarro, de onde só sairiam 17 horas mais tarde, sem água, comida ou casa de banho. O destino era a prisão de Sanliurfa, a poucos quilómetros da fronteira com a Síria.

“Chegámos a Sanliurfa ​ao final do dia de terça-feira. Ainda não tinha dormido, feito uma refeição ou tido acesso ao meu telemóvel desde a detenção, ninguém sabia onde eu estava”, conta Miguel. “Ficámos nessa prisão até 13 de Julho, com outros reclusos (tchetchenos, russos, turquemenos) a ameaçar-nos de morte. Todas as noites um de nós ficava acordado para garantir que ninguém entrava na nossa cela para nos magoar.”

Na primeira semana em que estiveram detidos, todos os serviços se tornaram mais lentos, com os turcos a aproveitar os feriados religiosos nacionais junto das famílias para celebrar o Eid al-Adha, a “Festa do Sacrifício”, que este ano decorreu entre 28 de Junho e 2 de Julho. Só na semana seguinte é que Miguel conseguiu fazer uma chamada.

“Só me lembro de decorar o nome do sítio onde estava e ligar ao meu pai: ‘Fui detido, estou aqui, preciso de ajuda’.” "Em choque", a família informou de imediato a embaixada de Portugal na Turquia, mas nenhum representante português chegou a visitar Miguel enquanto esteve preso, nem lhe foi oferecida qualquer ajuda.

O P3 contactou a embaixada de Portugal na Turquia e o Ministério dos Negócios Estrangeiros português para mais esclarecimentos, mas não obteve uma resposta até ao momento de publicação do texto.

"Porque é que estas bichas estão aqui?​"

Pelas várias esquadras, prisões, divisões por onde passaram, os insultos não partiram só de outros reclusos, que cumpriam as penas a que tinham sido condenados, mas dos guardas. As palavras turcas chegavam pela tradução de Elyas, iraniano a viver na Turquia há uma década, e o único dos três que compreendia a língua.

“Comentaram várias vezes: ‘Porque é que estas bichas estão aqui?’, enquanto se riam de nós. Ignoravam-nos quando fazíamos perguntas, era como se não existíssemos”, explica Miguel, de nacionalidade portuguesa e sul-africana, acrescentando que continuava a ser a roupa que escolheu naquele domingo que levava a conclusões sobre a sua orientação sexual. “O meu amigo do Irão usava um kilt quando foi detido, eu usava uma blusa curta, foram essas as roupas que usámos durante 20 dias.”

Elyas foi preso durante a 21.º Marcha LGBTI+ de Istambul, por "violar a Lei 2911, relativa a manifestações e reuniões públicas”, justificaram as autoridades à organização Istanbul Pride​. É activista LGBTI+ e vive na Turquia com estatuto de refugiado. Fugiu do Irão com a família depois de terem sido torturados pelas suas convicções políticas. Apesar de beneficiar de protecção internacional pelo risco que representa o regresso ao país de origem, a Turquia ordenou a sua deportação. Neste momento, voltar seria uma sentença de morte.

Nos últimos anos, o discurso xenófobo e anti-imigração tem crescido na Turquia, em particular contra cidadãos sírios. Dos 3,6 milhões de sírios que encontraram refúgio no país vizinho desde o início da guerra, o Presidente turco prometeu no mês passado, no primeiro discurso após ser reeleito, deportar um milhão de pessoas.

No mesmo dia, Recep Tayyip Erdogan insistiu no discurso de ódio contra pessoas LGBTI+, deixando cada vez mais distante uma eventual adesão de Ancara à União Europeia. “Na nossa cultura, a família é sagrada. Ninguém se pode intrometer. Vamos estrangular todos os que ousem tocar-lhe.”

O segundo pior país da Europa

A esperança de liberdade chegaria a 12 de Julho, 18 dias depois da detenção. Desta vez, as notícias de que sairia em breve da prisão, e do segundo pior país da Europa para a comunidade LGBTI+, eram mesmo verdade.

Miguel Álvaro foi escoltado pela polícia até à porta de embarque no aeroporto de Istambul e voou para Portugal a 13 de Julho, com a viagem paga pelo Istanbul Pride, que acompanha os três cidadãos — Miguel, Elyas e o de nacionalidade russa, chamemos-lhe Ivan — desde a detenção. Foram os mesmos activistas que recuperaram a bagagem e documentos de Miguel, incluindo o passaporte, deixados no apartamento em Taksim.

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Mapa divulgado todos os anos ilustra avanço de políticas e legislação sobre pessoas LGBTI+ nos diferentes países europeus. Ilga Europe

No Mapa Arco-Íris da ILGA Europa de 2023, a Turquia fica no penúltimo lugar quanto à protecção e respeito pelos direitos das pessoas LGBTI+, apenas ultrapassada pelo Azerbaijão. Numa escala em que 0% significa graves violações de direitos humanos e discriminação e 100% significa plena igualdade e respeito pelos direitos humanos, a Turquia alcançou apenas os 4%. Para comparação, Portugal, que caiu para 11.º lugar, alcançou os 62%.

Perante a demora das instituições, foi o Istanbul Pride que permitiu que os três tivessem apoio judicial gratuito, que mantivessem contacto com advogados e activistas, que por sua vez informavam as famílias acerca do estado de saúde de cada um, e negociassem as condições em que seriam libertados. Pelo menos no caso de Miguel, houve também intervenção do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).

Miguel chegou esta terça-feira ao Brasil, onde vive actualmente. Está impedido de entrar em território turco nos próximos três anos. Ivan foi deportado para a Rússia, apesar de querer avançar com um pedido de protecção internacional. Elyas continua preso. Segundo declarações da família a meios de comunicação internacionais, foi agredido em Sanliurfa depois da saída dos dois amigos.

“Neste momento, estou num estado psicológico horrível, tenho muito medo das sequelas no futuro. Não consigo acreditar que isto me aconteceu. Rezo para que se faça justiça”, confessa o português, que trabalha como professor no Brasil. O que aconteceu, diz, marca o fim da despreocupação com que planeava cada viagem. “Não vou descansar. Espero levar o meu caso ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.”

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