Os extremos estão em todo o lado

Nas redes sociais, se alguém condenasse a acção do agente era atacado pelos defensores deste sendo chamado de anarquista e se condenasse as revoltas era acusado de racista e fascista de forma raivosa.

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Megafone P3: O caso de Nahel e os extremos EPA/MOHAMMED BADRA
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Este mês lamentamos a morte do grande autor Milan Kundera, um escritor essencial e um dos pilares da literatura do século XX. Li a notícia da sua morte com tristeza, pois é um dos meus escritores favoritos.

Enquanto tentava recordar os seus livros, para mim, mais memoráveis, veio-me à mente o seu primeiro romance A Brincadeira. Nesse livro, publicado em 1967, está uma das minhas frases preferidas de sempre e que tanto representa os dias actuais: “O homem, essa criatura que aspira ao equilíbrio, compensa o peso do mal com que lhe partem a espinha, com a massa do seu ódio”. Frase forte, é certo, mas que representa de forma excelente a natureza do ser humano moderno, ou melhor, a natureza humana em si.

A frase do genial autor fez-me reflectir sobre os cada vez mais acentuados extremos da nossa sociedade. Que extremos são esses? Basta ler o jornal ou aceder às redes sociais para os observar e/ou participar neles. Os extremos estão em todo o lado e fazem parte daquilo a que Albert Camus chamava de absurdo; é o senso comum actual, o regresso ao dente por dente, aos absolutos e aos heróis e vilões.

A título de exemplo podemos falar do caso Nahel, o jovem que foi assassinado pela polícia em França. Um acontecimento horrível em que a polícia abusou do seu poder e autoridade para tirar a vida de um adolescente de 17 anos quando a situação não exigia tal procedimento.

O agente agiu mal e deve ser punido, arcando com as consequências da sua nefasta decisão. No entanto, o caso não findou ali, uma vez que milhares de jovens (principalmente oriundos do norte de África, como Nahel) decidem causar uma revolução nas ruas das principais cidades francesas. Não obstante, o interessante do caso foi a divisão mútua entre nós e eles: entre os apoiantes da revolta e os seus opositores mais férreos, opositores esses que, de forma bizarra, decidiram apoiar o polícia que assassinou Nahel como se de uma vítima se tratasse.

Nas redes sociais, se alguém condenasse a acção do agente era atacado pelos defensores deste sendo chamado de anarquista e se condenasse as revoltas era acusado de racista e fascista de forma raivosa. Ora, tanto um lado como o outro estão profundamente equivocados, pois destruir cidades e assassinar pessoas a sangue-frio são duas coisas erradas. No entanto, cada lado define um conceito de bem e mal de forma bem clara e esse passa a ser o seu senso comum absoluto.

Neste e outros casos, o mundo perde a sua ambiguidade e fica dividido entre os bons e os maus, sendo os “bons” sempre os “nossos”, caindo no mais profundo absurdo e esquecendo a razão. Talvez o Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago tenha sido mais um livro profético do que um romance, porque, de facto, estamos a ficar cegos, não por uma doença, mas por ideologias, ideias e conceitos que adoramos como deuses.

O mundo cada vez mais ateu torna-se, paradoxalmente, cada vez mais religioso e os ideais político-sociais vão-se tornando, pouco a pouco, em dogmas. Isso é, invariavelmente, perigoso, pois vamos abandonando o logos e assentando a nossa civilização no sentimentalismo e no desejo – no pathos – de forma a ficarmos reduzidos a “verdades absolutas” que devem ser defendidas até às últimas consequências.

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