Três personalidades com histórias da floresta dividem o Prémio Gulbenkian para a Humanidade
Prémio atribui um milhão de euros a Bandi “Apai Jangutt”, Cécile Bibiane Ndjebet e Lélia Wanick Salgado, que trabalharam na conservação de florestas na Indonésia, nos Camarões e no Brasil.
As histórias que estão no centro da quarta edição do Prémio Gulbenkian para a Humanidade envolvem o restauro e a conservação de florestas, entrelaçados com a vida das comunidades, num trabalho de décadas, onde surgem as ideias de amor e parentesco. Bandi “Apai Jangutt”, um líder de uma comunidade indígena iban, na Indonésia, Cécile Bibiane Ndjebet, uma activista e agrónoma dos Camarões, e Lélia Wanick Salgado, ambientalista, designer e cenógrafa, do Brasil, receberam nesta quarta-feira o prémio no valor de um milhão de euros, dividido de forma igual, “pela sua liderança e trabalho incansável no restauro de ecossistemas vitais”, avança um comunicado da Fundação Gulbenkian.
Bandi “Apai Jangutt” lutou durante quatro décadas até a sua comunidade ter conseguido obter, em 2020, o direito à propriedade de 95 quilómetros quadrados, dado pelo Governo indonésio. A comunidade indígena Dayak Iban Sungai Utik Long House vive no centro da ilha de Bornéu, já perto da fronteira com a Malásia, onde o desmatamento e a produção de óleo de palma são ameaças aos ecossistemas naturais, que a comunidade defende e protege.
“Eles são o povo iban, para eles a floresta é muito importante e eles não separam a floresta das suas vidas”, explica ao PÚBLICO Yani Saloh, que é tradutora. Os três premiados chegaram ao início da manhã à Fundação Gulbenkian para um jogo de entrevistas de dez minutos com os jornalistas, horas antes da cerimónia que ocorrerá ao fim da tarde. Nota-se o cansaço de Bandi “Apai Jangutt”, que, dos três, foi quem veio de mais longe.
Essa distância estabelece-se na dinâmica da entrevista: as questões são lançadas em inglês, traduzidas para bahasa, a língua oficial da Indonésia, por Yani Saloh e respondidas na linguagem iban por Bandi “Apai Jangutt”, que apesar de parecer perceber o bahasa, não fala a língua. É Raymundus Remang, outro membro da comunidade, que traduz as palavras do ancião para bahasa, já que Yani Saloh não compreende o iban, e que por sua vez traduz para inglês.
Por isso, uma questão lançada numa sala da Fundação Gulbenkian, no meio de uma capital europeia, recebe uma resposta do ancião que parece vir de milhares de quilómetros de distância, do meio da floresta, a partir de outro modo de pensar. “Eles dizem que a terra é a sua mãe, a floresta o seu pai e a água é o seu sangue”, continua a traduzir Yani Saloh. “Isto é a filosofia iban, é por isso que eles tratam e respeitam a terra e a floresta como se fossem os seus pais. Não se pode magoar os pais, certo? É isso que eles tentam fazer, proteger a mãe Terra, porque ela é parte da cultura iban.”
De acordo com o Banco Mundial, os territórios das comunidades indígenas em todo o mundo – que perfazem cerca de 6% da população mundial – é onde se encontra 80% da biodiversidade. A comunidade Dayak Iban Sungai Utik Long House conseguiu preservar um pedacinho da floresta indonésia, recebendo inclusivamente o Prémio Equador das Nações Unidas, mas os desafios não terminam com a sua posse.
O grupo subsiste com aquilo que retira da terra, através da agricultura, e da floresta. O desafio a partir de agora é desenvolver um plano de gestão “para assegurar que a floresta que estiveram a proteger vai ajudar para terem um futuro seguro a longo termo para as gerações vindouras”, adianta Yani Saloh, numa altura em que as alterações climáticas já se fazem sentir tornando difícil prever quando é que se deve plantar os campos e obter a colheita.
Naquele contexto, o valor do galardão vai ajudar na educação da geração mais jovem, no desenvolvimento do ecoturismo feito pela comunidade e num plano de gestão floresta que permita explorar os serviços do ecossistema.
O Prémio Gulbenkian para a Humanidade distingue projectos e pessoas que têm contribuído para a luta contra as alterações climáticas.Em 2020, na primeira edição, a activista climática sueca Greta Thunberg foi a premiada. Em 2021, o Pacto Global de Autarcas para o Clima e a Energia levou o galardão e no ano passado o prémio foi para duas instituições, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas e a Plataforma Intergovernamental Científica e Política sobre a Biodiversidade e os Serviços dos Ecossistemas. Desta vez, “o júri escolheu estas três personalidades como forma de reconhecer um trabalho de grande transformação no Sul Global, levado a cabo por comunidades que, apesar de serem as mais afectadas pelas alterações climáticas, foram as que menos contribuíram para as causar”, refere Angela Merkel, presidente do júri do prémio, no comunicado.
Marcada pela infância
A infância de Cécile Bibiane Ndjebet foi marcada pela vida na floresta. “Aos quatro anos de idade, a minha mãe já estava a levar-me para a floresta”, recorda ao PÚBLICO. “Aprendi que a floresta era muito útil porque tudo o que era alimentos, medicamentos naturais, água, recolhíamos da floresta. Por isso, aprendi desde cedo a amar a floresta, a protegê-la e respeitá-la.”
Ao mesmo tempo, a camaronesa foi se apercebendo da realidade das mulheres à sua volta. “Cresci com a minha mãe e a minha irmã mais velha. Elas sofreram muito para nos criar e as mulheres na aldeia também tinham muitas dificuldades, estavam sempre ocupadas a cuidar das crianças”, conta.
“A minha mãe deitava-se tarde e acordava cedo. Eu via os desafios que elas tinham e desde então decidi defender os direitos das mulheres”, afirma. Um dos problemas que Cécile Bibiane Ndjebet aponta é o facto de as mulheres nos Camarões e em outros países africanos não terem o direito à terra. Nos últimos 30 anos, a activista tem lutado pela igualdade do género e o direito das comunidades à floresta e aos seus recursos.
“Estou a tentar fazer com que haja reformas políticas relacionadas à floresta. É muito importante que haja uma política florestal que seja que igualitária para o género”, explica a activista que estudou agronomia e conheceu Wangari Mathai (1940-2011), a famosa Nobel da Paz queniana que ficou conhecida pelo Movimento do Cinturão Verde. “Ela inspirou-me mesmo para continuar a lutar pela floresta e pelo ambiente.”
Em 2001, Cécile Bibiane Ndjebet fundou a organização não-governamental Cameroon Ecology para promover a gestão dos recursos naturais pelas mulheres e as comunidades de modo a potenciar o desenvolvimento económico.
Para isso, ela trabalha a diferentes escalas: com deputados do parlamento, com o equivalente aos presidentes das Câmaras das cidades, com os chefes dos povos tradicionais e com os responsáveis das famílias, normalmente os homens. “Tento explicar aos homens as restrições que existem se as mulheres não têm muitos direitos”, explica. “Os direitos das mulheres são importantes mesmo para a vida dos homens, não só a nível das condições de vida, mas também se queremos enfrentar problemas como as alterações climáticas.”
Através do seu trabalho, a activista já conseguiu restaurar seis quilómetros quadrados de floresta de mangal. Em 2009, fundou uma organização transnacional chamada Rede de Mulheres Africanas para a Gestão Comunitária de Florestas que integra 19 países. “Quase em todos os países em África, as comunidades estavam fora do sistema de gestão de florestas e apercebemo-nos que se não envolvêssemos e colocássemos as comunidades no centro dessa gestão, dificilmente conseguiríamos obter uma gestão sustentável”, diz.
Segundo Cécile Bibiane Ndjebet, o impacto das alterações climáticas na biodiversidade em África já é um tema e “se as comunidades estiverem fora da gestão das florestas, torna-se muito difícil enfrentar a perda da biodiversidade”.
O prémio vem dar um impulso e motivação para esta luta. “Estou tão feliz por se uma das vencedoras”, diz, sorridente. “Este prémio é uma grande contribuição para aquilo que estou a fazer no meu país e é também um reconhecimento por aquilo que tento alcançar nos últimos 30 anos.”
Vontade louca
Os três premiados são “um exemplo de liderança excepcional, com impacto significativo, em harmonia com a natureza e as comunidades locais”, argumenta por sua vez António Feijó, presidente do Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian, em comunicado. “As suas histórias poderão inspirar muitas outras pessoas.”
A história que traz Lélia Wanick Salgado a Lisboa começou com uma “vontade louca”, quando viu umas chuvadas intensas a levarem a terra da fazenda, despida de árvores, dos sogros, os pais do fotógrafo Sebastião Salgado. O casal, que vive em Paris, costumava visitar os pais do fotógrafo na altura do Natal, que viviam na Fazenda Bulcão, perto da cidade de Aimorés, em Minas Gerais, no Brasil, na altura das chuvas.
“Caiu uma chuva enorme e essa chuva vinha trazendo a terra toda para baixo. Era tão feio e a terra já era tão feia, toda muito degradada, a fazenda toda, a região toda. Aquilo deu-me um desespero, porque nós íamos tomar conta da fazenda, depois. Deu-me uma tristeza tão grande e veio na hora. Fechei os olhos e vi tudo verde. E falei ‘aqui vamos plantar uma floresta’", conta ao PÚBLICO. “E foi assim que nasceu a história do Instituto Terra.”
O instituto nasceu em 1998. De lá para cá, com a ajuda do trabalho da comunidade, a organização já plantou mais de 2,5 milhões de árvores nos sete quilómetros quadrados da fazenda. “É muito importante a Fundação Gulbenkian prestar atenção a essas acções para a gente reverter esse problema de clima”, adianta a ambientalista. “Para nós, é o reconhecimento internacional da nossa floresta, do trabalho que a gente faz lá.” Quem olhar para as fotografias tiradas por Sebastião Salgado da fazenda em 2001 e em 2022, observa os montes vazios da fazenda substituídos por um bosque denso, com as espécies da mata atlântica, a floresta típica da costa Sudeste do Brasil.
“Foi muito complicado. Na primeira plantação perdemos 60% das árvores”, recorda Lélia Wanick Salgado, que é uma das fundadoras do Instituto Terra, juntamente com Sebastião Salgado. A fazenda entretanto ganhou estatuto de reserva particular do património natural. Um passo importantíssimo, refere a ambientalista. “A gente primeiro tem que preservar”, diz.
“Mas a floresta é uma coisa muito além da gente, é para o globo, para a comunidade. Foi por isso que obtivemos esse estatuto. Hoje, a floresta do Instituto Terra é perene, ela só vai acabar se cair um raio e queimar. Mas fora isso, ninguém tem o direito de abater uma árvore.”