Centro do Clima nasce para alavancar a “transição” e restabelecer a esperança
Casa Comum da Humanidade e Movimento para a transição em Portugal apadrinham projecto da Póvoa de Varzim em associação com a Biopolis e a freguesia de Rates. Centro do Clima nasce esta segunda-feira.
Água e terra, fogo e ar. O reequilíbrio da nossa relação com estes quatro elementos – representando os dois últimos a energia e o clima – sintetiza, numa linha, o programa do Centro do Clima (CC), um novo organismo que terá como missão impulsionar a transição do concelho da Póvoa de Varzim para uma economia pós-carbónica. Fruto de uma parceria entre o município, a associação Biopolis e a Junta de Freguesia de São Pedro de Rates, o CC nasce esta segunda-feira, apadrinhado pela Casa Comum da Humanidade e pela rede portuguesa de organizações para a Transição, movimento que ganha um parceiro de peso no nosso país.
Desde 2010 que existem, de norte a sul, em Portugal, iniciativas de base local e comunitária, associadas à rede internacional Transition Network. Mas, entre nós, o movimento fundado em 2006 na pequena cidade inglesa de Totnes, e que procura “reimaginar” a forma como vivemos e fazer, localmente, a transição para uma economia e uma sociedade de baixo carbono, mais resiliente e mais justa, tem estado quase sempre dependente da disponibilidade de pequenos grupos de cidadãos.
Contrariando um certo desinteresse dos poderes locais pela filosofia subjacente a estas iniciativas, a criação do Centro do Clima coincide com o lançamento, por parte do próprio município da Póvoa de Varzim, do movimento Póvoa em Transição, que terá o CC como dinamizador junto da comunidade. Na terça-feira, estreia-se nesta cidade o documentário Alter Nativas, que mostra a dinâmica da Transição em Espanha.
O presidente da Câmara da Póvoa de Varzim garante que o movimento não será apenas um slogan e promete dar todas as condições possíveis para que o Centro do Clima ajude o concelho a fazer uma mudança para uma economia menos energívora e mais respeitadora da natureza, e para que se possa tornar, ainda, fonte de inspiração para outros municípios.
Aires Pereira explicou ao PÚBLICO que o CC vai ficar instalado em São Pedro de Rates, uma histórica vila rural no interior do concelho, passando a gerir, no futuro, o parque verde local, de 12 hectares, no qual terá instalações. Para além de uma base numa localidade que concentra alguns dos desafios a que terá de responder, o centro terá, neste primeiro ano, cem mil euros para apoiar o funcionamento, a contratação de colaboradores e a preparação dos primeiros projectos.
O gestor do centro será Pedro Macedo, que, para além de uma larga experiência no movimento ambientalista português, fez doutoramento em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável, precisamente com uma tese sobre os municípios em transição, outro movimento da Transition Network mais dedicado a fomentar a colaboração entre autarquias e a sociedade civil. Macedo trabalhou como investigador na rede Municipalities in Transition e é um profundo conhecedor das experiências que estão a ser levadas a cabo, em vários países, para incorporar, no domínio das organizações públicas, os princípios da transição.
Nesta lógica de relação com o poder local, Aires Pereira espera que o centro ajude a mudar o quadro mental das equipas técnicas da edilidade e que participe na avaliação dos projectos municipais, à luz dos objectivos do Plano de Acção para a Sustentabilidade Energética e Climática do município.
“Temos de discutir mais cada projecto. Muitas destas intervenções no território têm um efeito ao longo de décadas, e não podemos correr o risco de repetir erros passados. Temos de utilizar mais a natureza a nosso favor e agir menos contra ela”, argumenta o autarca do PSD, que vai no seu último mandato.
Além deste papel consultivo, o CC procurará desenvolver projectos, com múltiplos parceiros, tendo como pilares os quatro elementos já referidos: ar, terra, água e fogo. Termos que, mais do que palavras-chave, significam, no caso da Transição, um certo reencontro com a base da nossa existência neste planeta, a natureza.
No ar e na terra, na água e no fogo
No ar estão incluídas acções associadas ao clima, à adaptação e mitigação das consequências das alterações climáticas no território concelhio, e a temas como o mercado de carbono ou a contabilização de emissões. Já a terra abrange, por exemplo, um tema fulcral na Póvoa de Varzim, concelho com uma agricultura (hortícolas e milho) e pecuária (vacarias) tão pujantes como intensivas que, como noutros pontos do país, precisam de fazer uma transição para uma agro-pecuária regenerativa, capaz de cuidar do solo de que, em última análise, dependem.
Aires Pereira considera que os próprios agricultores já perceberam que o actual modelo é insustentável e estão interessados em mudar as suas práticas agrícolas. A agro-pecuária, como outras actividades humanas geradoras de resíduos e efluentes, afecta também a qualidade das ribeiras e dos aquíferos do concelho, que serão alvo de atenção do CC na área da água.
O rio Alto, que atravessa uma parte do território poveiro, será um alvo prioritário, numa estratégia que visa recuperar a biodiversidade, mas também recompor as margens, criando, por exemplo, bacias de retenção para acomodar dias de pluviosidade intensa e minimizar o efeito das cheias.
Para o fogo ficam reservadas todas as acções ligadas à energia, seja do ponto de vista da reconversão das formas de produção, seja do ponto de vista do consumo. É neste pilar, por exemplo, que o centro tentará pôr em prática acções no domínio da mobilidade sustentável – apoiando a concretização do respectivo plano municipal, já aprovado – da alimentação, e das energias verdes.
A Póvoa de Varzim, explica o seu presidente da câmara, já está envolvida num projecto metropolitano, coordenado pela Agência de Energia do Porto, que criará uma grande comunidade de energia a partir de projectos de produção solar instalados em edifícios da administração local. Urge trabalhar em lógicas semelhantes com o sector privado e os cidadãos, de modo a que também estes se possam tornar produtores, com impacto positivo no ambiente e na economia familiar.
Restabelecer a esperança em tempos estranhos
Aires Pereira concede que a iniciativa surge em tempos estranhos, em que a inércia no campo internacional leva ao desespero dos jovens. “A juventude acredita pouco nas soluções, porque não vê as coisas a acontecerem com a urgência necessária. Com o centro, e com este movimento que vamos lançar, queremos evitar a ruptura e restabelecer a esperança”, adianta o social-democrata, autarca de um município onde vivem cerca de 64 mil pessoas, a maior parte delas concentrada no litoral, na cidade sede do concelho.
No preâmbulo do protocolo que esta segunda-feira é assinado entre o município, a associação Biopolis (parceira do PÚBLICO no Azul) e a Junta de São Pedro de Rates, é explicado que, “a par da regeneração e valorização dos recursos endógenos, com vista a garantir a máxima autonomia energética e alimentar, pretende-se investir numa governança inclusiva, na formação integral e na economia da partilha”.
Numa perspectiva muito cara à forma de actuar do movimento para a Transição, o centro pretende apostar em processos “colaborativos e participativos”, procurando agregar os diferentes agentes que actuam no território e gerar, dessa forma, “uma mudança cultural e de mentalidades”.
Com compromissos de colaboração futura, o Centro do Clima contará, desde o primeiro dia, com o apoio (“endosso”) da Transition Network, que tem na portuguesa Filipa Pimentel a responsável pela coordenação dos vários “hubs” nacionais do movimento, e da Casa Comum da Humanidade.
Sediada no Porto, esta organização internacional, actualmente liderada pela investigadora e docente universitária Sara Moreno Pires, luta pelo reconhecimento do clima estável como um bem jurídico, comum a toda a humanidade, merecedor de um sistema de governança próprio, que vá para além da insuficiente boa vontade de alguns povos e ultrapasse a evidente falta de vontade de outros em trabalhar para cumprir os objectos inscritos nos tratados internacionais, como o Acordo de Paris.
O presidente da Câmara da Póvoa de Varzim reconhece que preservar as condições de habitabilidade nesta casa comum, o planeta, é uma tarefa que transcende um município, um país, ou até um bloco regional como a UE.
E, sem desvalorizar o que venha a acontecer no seu território, considera que o sucesso do Centro do Clima dependerá, também, da sua capacidade de inspirar outros concelhos da região e do país a criarem organismos com propósitos semelhantes, para dar escala a alguns dos projectos. Essa, admite, seria uma forma de chegar a fontes de financiamento mais robustas, essenciais para custear muitas das mudanças que será necessário pôr em marcha, e que contarão, pelo caminho, com muita resistência por parte de quem teme ter algo a perder com a transição. “Temos de conquistar as pessoas para conseguir resultados”, insiste Aires Pereira.