O trabalhador-estudante e o criador de negócios que subiram a pulso no “elevador social”

Um foi sendo promovido numa multinacional investindo no ensino superior pós-laboral. Outro investiu em formações para dominar as paixões e criar o seu próprio negócio

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ZéZé Almeida fez o Curso de Animadores de Rádios Locais, no Centro de Formação do Porto Rui Oliveira
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José Agostinho Soares, de 55 anos, nasceu numa pequena freguesia do concelho de Penafiel e ficou a viver com os tios (e padrinhos) desde os 18 meses porque os seus pais se viram forçados a procurar trabalho no Porto. Havia de se lhes juntar na adolescência, quando decidiu que queria apanhar o “elevador social” e só havia um caminho: ser trabalhador-estudante. Trabalhar para se manter e estudar para melhorar a sua situação laboral.

Foi, brevemente, estofador, e foi subindo no armazém (de ajudante passou a chefe) de uma multinacional de bombas de água com origem na Dinamarca. Trabalha para a mesma empresa desde 1989, mas, desde que se atirou ao ensino superior (licenciatura em Recursos Humanos e mestrado em Marketing, entre 2007 e 2011) para poder continuar a subir na escala profissional, deixou o armazém e passou para os gabinetes, tendo dirigido várias áreas logísticas em Portugal e Espanha.

“A vida não era fácil e decidi estudar à noite e viver com os meus pais no Porto. Por minha iniciativa, e contra a vontade dos meus padrinhos, que queriam fazer um esforço para eu continuar o secundário em Penafiel. Terminei o 8.º ano e decidi que queria trabalhar e estudar. Entendi que era uma aldeia e as oportunidades não eram muitas nem de grande dimensão. Se querias alguma coisa da vida, saías. E sair para o Porto na altura já era um grande passo”, recorda, agora que optou por deixar de escalar o elevador profissional na empresa, mantendo-se em funções ainda de topo, mas que lhe exigem menos viagens e lhe dão mais tempo com a família.

Aliás, com a mulher, que conheceu no Liceu António Nobre quando se mudou para o Porto, e o filho, de 33 anos, investiu num alojamento local em Celorico de Basto, que abriu este ano, onde estão os três a colaborar num projecto para o futuro da família.

Na década de 60 do século passado, os portugueses saíam em massa de Portugal para procurar uma vida mais distante da pobreza (e muitos para fugirem à repressão do Estado Novo). Mas também abandonavam as aldeias e pequenas cidades (principalmente do interior) para se embrenharem, sobretudo, nas indústrias das cidades maiores. Um ano e meio depois do seu nascimento em 1968, os pais de José Agostinho saíram de Rio de Moinhos (a cerca de 50 quilómetros do Porto) para escaparem à escassez de empregos. “Não éramos pobres, vivíamos desafogados, mas era uma vida regrada, com algumas limitações. O meu pai foi para contínuo nas Finanças e a minha mãe para empregada de limpezas domésticas”, recorda José.

Queria emancipar-me cedo

“Tive uma imagem clara para o meu futuro. Queria emancipar-me cedo, queria ser pai cedo, tudo cedo para ter uma vida longa. Tudo farei para viver até aos 120 anos, mas com qualidade. E tudo o que faço, da alimentação ao estilo de vida (pratico desporto, faço prevenção de saúde, etc.), é nesse sentido. Não controlo o destino, mas controlo aquilo que faço, controlo o meu bem-estar e saúde. As minhas prioridades são a família, o bem-estar e a saúde”, acrescenta.

E refez o caminho. “Aos 15 anos, tinha acabado a escola, nem terminei o 12.º ano. Comecei a trabalhar a 100%. Estive um mês e tal a aprender como ser estofador e percebi que não era o meu caminho, não era o que queria. Fui para empregado de balcão de artigos sanitários, entre 1983 e 1989. Casei-me em Fevereiro de 1988. A 18 de Abril de 1989, entrei na minha actual empresa e em 1990 nasceu o meu filho”, recorda.

Foi subindo na empresa até sair do armazém para passar a ser vendedor, a vida corria-lhe bem. Mas teve um choque com a realidade laboral em 2006. “O que me levou mais a decidir ir estudar foi, através de uma empresa de ‘head hunters’, convidarem-me para entrevistas de director-geral de uma empresa. Passei os testes todos e, quando ficámos três, fui recusado porque era único sem licenciatura. Caiu-me mal, porque não é o que tu vales, é o papel que diz o que vales”, admite, tendo, então, tirado a licenciatura e o mestrado em regime pós-laboral.

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Rui Oliveira

Neste período, começaram a acolher estudantes estrangeiros num programa de intercâmbio porque o filho queria ir para fora – “vamos primeiro acolher, vês como funciona e, se mantiveres o interesse, apoiamos-te a ir”. Em 2007, o filho foi para os Estados Unidos, onde se formou em Design Gráfico e Antropologia, enquanto o pai se licenciava e tirava o mestrado na Maia.

Um dos estudantes que acolheu veio da região de Córdoba, na Argentina. “Acolhemos um jovem estudante durante seis meses e ainda hoje temos uma relação muito boa. Já me deu dois netos, por afinidade, como costumo dizer. Já fomos duas vezes à Argentina e tive o prazer de conhecer um dos meus ídolos de futebol – Pablo Aimar, que era vizinho dele”, diz o “bom adepto do Benfica”, que foi dirigente do hóquei em patins do FC Porto quando o filho lá jogou.

“Fui subindo na empresa”

Entretanto, foi colhendo frutos do investimento no ensino superior, que lhe custava as horas de lazer pós-laboral. “Fui subindo na empresa. Coordenei a estratégia de vendas e de vendedores, fui convidado para um novo projecto de estudos energéticos e, depois, para outro, de concentração de serviços de gestão e logística num só departamento. A empresa juntou os escritórios de Portugal e Espanha e fui convidado para gerir vários departamentos de gestão e logística. Já fui manager, mas reajustaram a empresa e queriam dar-me mais um país, Itália, mas entendi que, a dois ou três anos de entrar numa fase de reforma, não queria bloquear o acesso a jovens”, contextualiza José.

Além disso, e sobretudo, havia planos com ambições familiares. “Agora, quero tratar de mim. Investimos aqui praticamente tudo o que temos e depois ficamos aqui com um negócio para quando estiver reformado. E temos a sustentabilidade garantida”, conclui.

O homem que é uma marca

Um ano mais novo, José Joaquim de Almeida (1969, São Mamede de Infesta, Matosinhos) também apanhou o “elevador social”. Foi-se fazendo a pulso e, à boleia de paixões como a rádio, a música e a comunicação, lançou-se em negócios que lhe permitiram ser hoje patrão de si próprio. Actualmente, responde por ZéZé Almeida. “É uma marca que eu criei. Até a minha mãe já se habituou”, ri-se o consultor, formador e mentor em novas tecnologias.

“Posso ter partido de uma posição desfavorável, mas cheguei onde cheguei através do reconhecimento das pessoas com que me cruzei e por ter encontrado a minha vocação e a minha missão”, diz o também professor de uma universidade sénior, em regime de voluntariado, há oito anos.

“Nasci em São Mamede de Infesta, a 10 de Setembro de 1969. Na altura, a parteira ia lá a casa pôr-nos cá fora. Infesta ainda era uma freguesia, hoje é uma cidade. E teve uma grande influência na minha infância, porque tinha um grupo dramático, que fazia teatro, que acabou por ter impacto no meu futuro”, diz o filho de um antigo operário mecânico (já falecido) e de uma antiga operária têxtil.

“Estudei em São Mamede, e depois, quando cheguei ao 7.º, não havia respostas. Agora há, mas eu queria era ir para o Porto. A minha mãe achava que me ia perder e fui para a Maia e estudei lá até ao 9.º ano”, conta ZéZé Almeida, que na adolescência foi atleta de meio-fundo: “Os meus pais, na altura, limitavam-me e as actividades desportivas libertaram-me.”

“Éramos de classe média-baixa, estamos a falar de pessoas que viviam do seu trabalho, não podiam fazer poupanças porque o dinheiro era todo para as despesas. Não passávamos dificuldades, mas as férias eram na Praia de Matosinhos, a sete quilómetros de casa. E de vez em quando fazíamos uns passeios, porque o meu pai tinha carro”, destaca.

A viragem no horizonte surgiu na Maia. “Quando fui estudar para a Maia, conheci uma série de malta que tinha dinheiro e que estava a começar as rádios piratas. Eu tinha paixão pela música e pela comunicação. Com um amigo de algumas posses, que era da minha turma, fiz um programa numa dessas rádios. Pagávamos duas horas e a publicidade que angariávamos era para nós. Permitiu-me ficar próximo de um mundo que me era distante”, conta.

“A páginas tantas, aparece o Curso de Animadores de Rádios Locais, no Centro de Formação do Porto, o primeiro financiado pelo Fundo Social Europeu, em 1985, orientado pelo Emídio Rangel. Estagiei na Antena 1 e na Rádio Comercial, e o puto que vem de uma vida limitada entra neste mundo, das conferências de imprensa e afins”, regozija-se.

Na escola, acaba o 9.º ano na Maia e vai para o Porto, onde se fica pelo 11.º ano no Liceu Fontes Pereira de Melo. “Aí, sim, houve algo que precipitou o salto. Comecei a pôr música. Fui DJ durante 32 anos. Comecei nas festas de garagem e a ganhar dinheiro. O meu pai não queria, mas eu fugia de casa para pôr música”, ri-se o empresário e consultor. “Há ali um ano em que toda a gente usava uma camisola da Benetton. Pedi uma à minha mãe e ela disse que não ma podia comprar. Fui para a construção civil para comprar a famosa T-shirt”, diz.

“Deixei de estudar de dia e passei a trabalhar de dia e a estudar à noite. Pus música em tudo o que é sítio, com uma carreira de que me orgulho. Trabalhava na loja da Valentim de Carvalho [loja de discos] e à noite estudava e punha música. A determinada altura, já ganhava tanto dinheiro que já era mais do que o que os meus pais ganhavam juntos. Os estudos ficaram para trás”, assume.

Abriu um bar

Com passagens pelas discotecas e bares mais célebres do Grande Porto – da Twins à Dona Urraca, da Via Rápida ao Triplex, do Ferrugem ao Rendez-Vous –, abriu um bar: o Marechal, no Porto.

“Fiz vida familiar, tive um filho. Punha música de noite e trabalhava de dia e comecei a pôr música para casamentos. Isso levou-me a criar um negócio de gestão de eventos para casamentos. Ganhei tanto dinheiro que comprei uma casa, que depois vendi porque percebi que fiz asneira. Hoje, acho que fiz asneira em vendê-la, mas tomamos mil decisões por dia e não podemos acertar todas”, admite.

“Cheguei aos 40 anos e pensei que um dia o meu filho ia estar no mesmo bar em que estaria a pôr música e isso não fazia sentido para mim. Achei que tinha de fazer uma coisa diferente, algo que pudesse fazer aos 40, aos 50, aos 60, aos 70, sempre que quisesse”, revela sobre o momento de viragem definitiva na vida. “E digo para mim: tenho de ir para a escola, terminar o 12.º ano e fazer a universidade. Fiz um curso de gestão de eventos, numa espécie de Novas Oportunidades. Mas fui para a escola para validar a minha experiência, porque já tinha aptidão para as novas tecnologias, já fazia sites em blogspot. E o marketing digital estava a dar os primeiros passos”, recorda.

Fez uma formação em Web Developement. “Fiquei com [aptidões em] organização e gestão, mais o marketing. Em 2014, lanço a empresa EU Marketing para ajudar as pessoas que não tinham tido acesso aos computadores e à tecnologia. Utilizando as tecnologias, dou formação, mentoria e consultoria. Não quero ser visto como um guru, mas como alguém que sabe o que faz”, conclui o empresário e consultor.


A pobreza na infância e nos mais velhos, as privações materiais e sociais, as diferenças regionais e os desafios do custo de vida. Nesta série editorial, o PÚBLICO faz um raio X ao impacto da pandemia de covid-19 em Portugal, promovido pela Fundação ‘la Caixa’, do BPI e da Nova SBE, promotores do estudo Portugal, Balanço Social 2022, publicado em 2023.

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