Doñana deverá sair da “Lista Verde” da União Internacional para a Conservação da Natureza

Área protegida só passou em 17 dos 50 indicadores de avaliação e chumbou em todos os directamente relacionados com a conservação dos valores naturais.

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O parque perdeu grande parte das suas lagoas características Nuno Ferreira Santos
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É o mais recente golpe no Parque Nacional de Doñana, em Espanha, e pode ser mesmo o que será concretizado de forma mais célere. A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla inglesa) deverá retirar o espaço andaluz da sua “Lista Verde”, que distingue áreas protegidas bem-sucedidas em diferentes países.

A notícia foi avançada pelo El País, esta sexta-feira, que diz que “a deterioração ecológica” do parque “começa a pagar factura a nível internacional”. Segundo o diário espanhol, a comissão de peritos da UICN que avaliou os 50 indicadores que sustentam a manutenção dos espaços na “Lista Verde”, concluiu que Doñana não tem condições para continuar no grupo de 77 locais em 60 países que merecem a distinção.

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O parque nacional está a sofrer uma deterioração progressiva e um declínio na sua biodiversidade Nuno Ferreira Santos

Isto porque, durante a avaliação que foi feita entre 2021 e 2022, o parque só passou em 17 dos 50 indicadores e falhou em todos os que estavam especificamente ligados aos resultados na conservação da natureza. Os outros critérios avaliados são a boa governação, o desenho e planificação das áreas naturais e a sua gestão efectiva.

A avaliação foi tão lapidar que os cientistas consideraram mesmo que não era necessário fazer uma visita ao parque para confirmar o estado de degradação que este enfrenta e que já levou ao desaparecimento de grande parte das lagoas que o caracterizam e suportavam a reconhecida biodiversidade que o povoava. A seca e os projectos turísticos têm tido influência nesta situação, mas os peritos são unânimes em considerar que o principal problema de Doñana é a sobreexploração do aquífero no seu subsolo, que alimentava em grande parte essas lagoas, para o uso na produção de frutos vermelhos.

Esta agricultura de regadio intensivo intensificou-se nas últimas décadas em redor de Doñana e, apesar de existir um plano que estabelece o máximo de hectares que podem beneficiar da rega, há uma elevada percentagem de produções que funcionam ilegalmente, e que a Junta da Andaluzia, gerida pelo Partido Popular (PP), quer legalizar, recuperando uma proposta antiga do Vox, que já foi amplamente condenada pelas instituições europeias e o governo espanhol.

Agora, segundo o El País, os peritos que avaliaram Doñana, criticam abertamente esta política do PP, afirmando: “A administração [da Junta da Andaluzia] desenvolveu a sua gestão com grande contradição acerca dos recursos hídricos, já que não estabeleceu os mecanismos suficientes necessários para tentar travar e controlar os usos não autorizados que geram efeitos negativos sobre os valores e integridade do parque.”

O diário diz ainda que, há cerca de três semanas, a Junta da Andaluzia apresentou um recurso de última hora, para tentar reverter a decisão, mas que é praticamente impossível que ele venha a ser acolhido.

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Em torno do Parque Nacional foram crescendo cada vez mais produções de regadio intensivo Nuno Ferreira Santos

Decisão final em poucas semanas

O parecer dos dez peritos foi emitido, de forma condicionada, já no início do ano e, posteriormente avaliado por uma entidade independente, que verificou que os padrões de avaliação foram correctamente aplicados. A decisão final deverá ser tomada nas próximas semanas e, a cumprir-se a recomendação dos peritos, Doñana será a primeira área protegida a perder o “selo verde” de qualidade, que lhe garantia um lugar nesta lista da IUCN. O Parque Nacional da Serra Nevada é o outro único sítio espanhol da lista.

Citado pelo El País, o responsável pelo programa da Lista Verde da UICN, Thierry Lefebvre, dá como praticamente fechada a decisão final. “Não temos qualquer influência. Se os peritos concluem que o sítio não cumpre os padrões necessários, Doñana ficará como candidata. Teremos cinco anos para tentar recuperar o nível e melhorar os seus indicadores”, disse.

Ao PÚBLICO, Juanjo Carmona, coordenador para Doñana da WWF (World Wildlife Fund) Espanha, diz que a avaliação dos peritos da UICN confirma “o declínio da biodiversidade” no parque natural, considerando que essa “deterioração progressiva está assente na inacção da Junta da Andaluzia”. “[Juan Manuel] Moreno, [presidente da Andaluzia] e o seu conselheiro para o Meio Ambiente podem ser recordados por, pela primeira vez na história, retirarem Doñana de um reconhecimento internacional, e pela sua inacção”, diz o advogado.

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Juanjo Carmona diz que o presidente da Junta da Andaluzia será responsável por levar Doñana a perder o primeiro reconhecimento internacional Nuno Ferreira Santos

A “progressiva deterioração” do parque, acrescenta, é mais do que conhecida e os próprios técnicos de Doñana que “têm exigido” medidas, mas o presidente regional limita-se a “justificar o injustificável”, pondo em marcha apenas “medidas para os regantes ilegais, que estão a roubar água do aquífero e a criar um enorme problema”, critica o responsável da WWF.

O Parque Nacional de Doñana também está classificado, desde 1994, como Património da Humanidade de UNESCO, que também o distinguiu como Reserva da Biosfera em 1980.

Num comunicado emitido em Maio, a UNESCO anunciou que a área protegida poderá ser colocada na lista do “património em perigo”, durante a próxima sessão do Comité do Património Mundial, que vai decorrer na Arábia Saudita, em Setembro. Peritos da UICN também colaboram na avaliação que é feita por este comité e o relatório que emitiram sobre o local deverá ser analisado em conjunto com um outro da própria UNESCO.

A lista do “património em perigo” identifica sítios do Património Mundial que se encontram “severamente degradados, ameaçados, desprotegidos e vulneráveis”, seja por acção humana e/ou natural. Existem apenas 53 sítios com este estatuto e esta classificação é considerada uma ferramenta poderosa no plano internacional, que permite a consciencialização de todos para a necessidade de protecção dos sítios listados.

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A seca prolongada que afecta a Andaluzia nos últimos anos não é o factor principal para a deterioração do parque, dizem os peritos Nuno Ferreira Santos

É também uma forma de potenciar a criação de medidas correctivas, desenvolvidas pelos países em que o património se encontra e a UNESCO, com o objectivo de restaurar o que se perdeu.

Juanjo Carmona diz que, no caso de Doñana, o governo central de Espanha já “anunciou medidas que começam a ser executadas” e que, apesar de estarem longe de ser tudo o que a área protegida necessita, “são um primeiro passo e o mínimo de acção para começar a reverter o estado actual”. O mesmo não se passa com o governo da Andaluzia, critica. “Não puseram qualquer plano em marcha”, diz.

No final do ano passado o Governo espanhol anunciou um plano de choque de 356 milhões de euros para tentar salvar o parque. Mas a mudança demora em chegar e para algumas espécies pode ser tarde demais.

O anúncio da UNESCO de que poderá colocar a área protegida na lista do “património em perigo” surge depois de uma carta aberta assinada por 38 instituições e cientistas de todo o mundo ligados à conservação e estudo das aves migratórias, pedindo ao organismo internacional que fizesse isso mesmo, como acto “simbólico” e “grande alerta” para o drama de Doñana.

Um dos promotores do documento é o investigador português José Alves, do Centro de Estudos do Ambiente e Mar do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro e da Universidade da Islândia, e entre os signatários está a SPEA - Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves e a Speco - Sociedade Portuguesa de Ecologia.