Incêndios rurais: olhar para a estrutura da propriedade

Os incêndios rurais e a gradual diminuição das atividades tradicionais no mundo rural português são realidades interligadas que impõem elevados desafios. Estamos prontos?

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Megafone P3: Incêndios rurais Rui Gaudencio
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Ano após ano somos fustigados com incêndios rurais, sendo que, em anos de maior seca e com condições meteorológicas favoráveis, podemos assistir a incêndios de grande dimensão e de elevada intensidade.

Depois dos incêndios de 2017, em que se perdeu mais de uma centena de vidas e se assistiu a danos directos contabilizados em vários milhões de euros, na sequência das iniciativas que surgiram no sentido de mitigar os problemas detectados, pensava-se que estavam dados os primeiros passos para promover fortes alterações estruturais.

É certo que houve consideráveis mudanças legislativas, no entanto, não foram suficientes para mitigar o problema e promover a preparação das populações para lidar com os incêndios. Já no ano de 2022, sucederam-se incêndios com intensidades consideráveis, registando-se 110.007 hectares de área ardida, com 17 incêndios a superar os 1000 hectares e 101 incêndios enquadrados na categoria de “grandes incêndios”, ainda que não se tenha verificado a perda de vidas civis directas, segundo o ICNF.

Mas será possível resolver ou mitigar este problema sem analisar a conjuntura actual do mundo rural português? Outrora, sobretudo até aos anos 70 e 80 do século passado, as regiões do “interior” possuíam muito mais população, que exerciam uma actividade económica focada na agricultura, na pastorícia e na floresta.

Ainda assim, se, por um lado, as aldeias e povoações rurais detinham mais população e população jovem, que, em muitos casos, eram o garante de alguma segurança nos aglomerados mais dispersos, havia também uma área tampão a incêndios, constituída por campos agrícolas cultivados na envolvente dos aglomerados.

Além do mais, a floresta era uma fonte de rendimento para os proprietários rurais através da venda da madeira e da resina, por exemplo. Esta utilização do espaço florestal permitia que os proprietários fizessem a manutenção silvícola e estivessem presentes in loco.

Com a diminuição da população residente, muitas das actividades acabaram por diminuir ou desaparecer de forma drástica, nomeadamente os madeireiros, os resineiros, os apicultores, entre outras. À medida que as pessoas foram saindo do mundo rural, também o Estado se foi demitindo das suas responsabilidades, tanto pelo abandono das propriedades públicas, como pela falta de incentivo à manutenção de actividades estruturantes para o espaço rural que se estavam a perder.

A acrescentar a estes problemas surge um dos maiores entraves ao desenvolvimento do mundo rural português, a estrutura fundiária, sobremaneira no Norte e Centro de Portugal, a que se soma o grave problema da ausência de cadastro da propriedade rústica.

O minifúndio, predominante nestas regiões, só permite, e quando permite, uma economia de subsistência, incompatível com ganhos de escala e mercado. De facto, há uma desvalorização por parte de algumas entidades oficiais na criação de políticas que minimizem a ausência de rendimento para os proprietários. Como se pode resolver esta problemática? Aumentando o IMI, por exemplo?

Esta solução seria fácil, mas o resultado seria o inverso. Uma grande parte da propriedade rústica está parcelada entre vários proprietários, desconhecendo muitos deles o local exacto das suas propriedades, enquanto outros nem sabem que as possuem. Isso significa que, por exemplo, é comum uma pequena propriedade possuir diversos co-proprietários.

Uma série de outros desafios se colocam, mas parece ser clara a necessidade de se olhar para a estrutura da propriedade e para o seu uso. O programa Condomínio de Aldeia parece ser um bom começo, mas terá de ser simplificado e promover um melhor e efectivo envolvimento das populações, assim como necessita de uma forte articulação com o Cadastro Simplificado, de modo a facilitar o reconhecimento dos titulares dos prédios rústicos na interface urbanorural.

Por outro lado, programas como os “Aldeia Segura, Pessoas Seguras” necessitam de um novo dinamismo, devendo ser melhorados e promovidos de forma a aumentar a preparação e resiliência das comunidades rurais face aos incêndios.

Não faltam desafios, mas uma coisa é certa: a solução encontra-se no envolvimento de todos, desde instituições do Estado, até às universidades, associações locais e, obviamente, o cidadão. O cidadão é um elemento-chave para a promoção, mudança e revitalização dos espaços rurais.

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