Em defesa da Lei do Restauro da Natureza
Ao fim de tantos tropeções, dores de cabeça, trabalho de bastidores, a Lei do Restauro da Natureza foi finalmente aprovada. E isto significa que a União Europeia, com mais de 80% dos ecossistemas degradados, terá de adoptar, até 2030, medidas de recuperação que abranjam, pelo menos, 20% das zonas terrestres e marítimas. É menos do que tinha sido acordado em Montreal, Canadá, no passado mês de Dezembro, em resultado da COP15 e do Acordo Global de Biodiversidade Kunming-Montreal.
À volta desta votação surgiu o movimento #RestoreNature encabeçado por milhares de cientistas europeus, inúmeras organizações não-governamentais de Ambiente (ONGA) e diferentes grupos económicos que, tomando como base o conhecimento científico adquirido, chamaram a atenção para a necessidade desta Lei do Restauro da Natureza. No entanto, a versão final só será conhecida depois de o Parlamento Europeu e de o Conselho da União Europeia (neste momento em Espanha) chegarem a um acordo com a Comissão.
Tenho dito e reescrito que a informação da urgência, sobre a necessidade de recuperar ecossistemas degradados, é tão necessária e pedagógica quanto a questão do clima. Há um mês, escrevi aqui que estamos já para além do aviso laranja, em termos de degradação dos ecossistemas. Daí a necessidade desta lei e da sua aprovação. Mas, a partir de agora, ficarão sanados todos os problemas urgentes que temos denunciado? Podemos esperar que os governos compreendam que, mais do que política, o movimento #RestoreNature está a lutar para assegurar uma maior capacidade de sobrevivência perante um planeta em alteração global?
Apesar de aprovada, esta lei foi muito amputada. A politização em torno desta discussão veio mostrar quão difícil tem sido a mudança dos interesses económicos. Não é por acaso que ficou bem explícita a cláusula sobre o adiamento das metas em caso de forte impacto socioeconómico. Apesar de muitos agentes económicos estarem a favor, ao verem a oportunidade de novos negócios ligados ao restauro e melhor gestão da natureza, os interesses ligados à agricultura e pescas foram mais fortes. A segurança alimentar e a quantidade de alimento produzido foram as “armas” usadas em torno desta politização, como se o facto da preservação da biodiversidade fosse afectar a produção alimentar. Muito pelo contrário.
Felizmente que há já muitos agricultores e produtores florestais que não se revêem nesta posição. É difícil entender que, ao evitar ter manchas contínuas de produção – seja agrícola ou florestal – preservando a biodiversidade de ecossistemas, se geram serviços de grande utilidade para a produção e segurança alimentar e, consequentemente, maior produção económica. A presença de insectos polinizadores e de insectos e outra fauna que evite a presença de pragas são os mais óbvios e tantas vezes demonstrado em artigos científicos. Mas, para além desses, há a manutenção de zonas mais húmidas, a formação de solo, a retenção de carbono que pode servir para minimizar as emissões de gases com efeito de estufa.
Do ponto de vista das pescas, a delimitação de certas zonas como defeso ou a constituição e preservação de pradarias marinhas asseguram a presença de nichos ecológicos para berço de espécies piscícolas. O grande problema é que o tempo de resposta da natureza é diferente do desejado pelos interesses económicos e políticos. Joachim Claudet, um investigador marinho francês, depois de todo este debate aceso, afirmou: “A natureza não trabalha ao mesmo ritmo que os mandatos eleitorais...”
É grave, muito grave que se continue a espartilhar todo este assunto como se de preto e branco se tratasse, ou esquerda e direita, como querem passar. A natureza não é uma coisa nem outra, nem tão-pouco é natureza para contemplar ou para produzir. O respeito e a conservação devem ser idênticos e o que se fez na quarta-feira foi separar os interesses do “ambiente” aos interesses económicos da indústria alimentar. Como se a produção agrícola e piscícola não necessitassem de leis ecológicas para assegurar melhor gestão e produção.
Um dos problemas ligados à agricultura prende-se com a recuperação de turfeiras, pauis ou zonas húmidas que estão em vias de extinção. Um pouco por toda a Europa, em Portugal em particular, os pauis, charcos ou charcas têm sido explorados até à exaustão para a exploração de água necessária à agricultura. São consideradas zonas sem interesse, não-produtivas, esquecendo os serviços de ecossistema que fornecem como a retenção de água, a acumulação de carbono e a manutenção de uma biodiversidade própria que serve de refúgio de muitas espécies de flora e fauna. “Obrigar” a recuperação destes ecossistemas é algo impensável para os detractores da lei do restauro, que as consideram como áreas inúteis para exploração económica.
Uma outra conquista da dita direita do Parlamento foi a questão da retirada do artigo que referia a manutenção de matéria morta nos ecossistemas. O grande argumento da deputada europeia do PSD é que ao terem obtido essa “conquista” foi uma salvaguarda das nossas florestas, e da prevenção contra incêndios. Não vale a pena alongar sobre este assunto, já que Gonçalo Soutinho já aqui o disse e muito bem. Todas as frases feitas com ameaças veladas apelando ao sentimento e provocando o medo às pessoas são falsas e demagógicas.
Pensar que a floresta é apenas a árvore de exploração é reduzir a importância de uma verdadeira floresta com diferentes estratos arbóreos e arbustivos. Quando se defende a presença de matéria morta não é deixar árvores ou ramadas cortadas e empilhadas como se vê por aí, um pouco por toda a parte. É deixar matéria que volta ao solo e que permite a sua renovação, a manutenção do ciclo de nutrientes e a retenção de água.
Fala-se tanto em florestas e incêndios e esquece-se que o Mediterrâneo evoluiu com o Homem e o fogo, moldando e organizando o espaço para ele e para os animais. A floresta mediterrânica sempre se adaptou ao fogo. O problema actual é que não temos floresta mediterrânica, apenas alguns resquícios de matas, de bosques e mesmo esses estão em vias de extinção. Actualmente, o incentivo são as florestas uniformes, contínuas e contíguas que não fazem solo e ainda por cima são ígneas. Os bosquetes que não arderam ou ardem não é tanto pelo tipo de árvores, mas mais pelo tipo de solo, orgânico, complexo, que retém a humidade e que retarda o fogo. Depende da gestão do povoamento florestal, algo que está contemplado na lei e que falsamente tem sido outro argumento contra. A defesa da lei não pressupõe falta de gestão, ou controlo.
Ainda temos muito que aprender e disseminar. O importante agora é demonstrar, com seriedade científica, que os defensores desta lei apenas se preocupam com a nossa sobrevivência enquanto espécie neste grande ecossistema que é o planeta Terra. É tempo de olhar para a biodiversidade como se olha para o clima: um e outro se interpenetram e não se pode combater um sem o outro. Os cientistas conseguiram sair do seu laboratório e do seu anonimato para gritar bem alto a sua preocupação. Os media, não apenas alguns, terão de se esforçar mais para colocar este assunto na ordem do dia, formando e informando a população em defesa desta Lei do Restauro da Natureza.