Morreu o escritor Milan Kundera, satirista do totalitarismo
Uma referência incontornável da literatura, o autor de A Insustentável Leveza do Ser tinha 94 anos. Nascido na República Checa, passou grande parte da vida em França, onde se exilou em 1975.
O escritor Milan Kundera morreu nesta quarta-feira em Paris, aos 94 anos, noticiou a televisão pública da Chéquia e confirmou a sua editora em França, a Gallimard, que fala numa morte após “doença prolongada”. Desaparece um dos maiores nomes da literatura do século XX, alguém cujos romances “sombrios e provocativos mergulham no enigma da condição humana”, descreve o canal de informação France 24.
Crónico candidato ao Nobel da Literatura — que nunca venceu —, Kundera é provavelmente o escritor checo mais conhecido no mundo depois de Franz Kafka (1883-1924). A Insustentável Leveza do Ser (editado em Portugal em 1987 e adaptado para cinema no ano seguinte por Philip Kaufman) é o seu livro mais célebre.
Nascido a 1 de Abril de 1929 em Brnö, na antiga Checoslováquia, escreveu romances, ensaios, textos para teatro e poesia. Foram-lhe atribuídos os prémios Médicis (1973), Mondello (1978), Common Wealth (1981) e Jerusalém (1985), entre outros.
Estudou em Praga, onde foi professor de História do Cinema na Academia de Música e Arte Dramática e no Instituto de Estudos Cinematográficos. Associou-se, ainda na adolescência, ao Partido Comunista, mas viria a ser expulso por discordâncias políticas.
Escrito entre 1962 e 1965, e lançado dois anos mais tarde (queixas de censores atrasaram a sua publicação), A Brincadeira foi o seu primeiro romance. Descrito pela NPR como uma “visão satírica do comunismo totalitário” na Checoslováquia da altura, foi lá um sucesso imediato — venceu, em 1968, o Prémio da União de Escritores do país.
No mesmo ano, a Checoslováquia foi invadida pela União Soviética. Os livros de Kundera seriam proibidos e retirados de circulação. O escritor exilou-se em França em 1975. Quatro anos mais tarde, as autoridades comunistas checas retiraram-lhe a nacionalidade.
Em 2019, o Governo checo decidiu devolver-lhe a cidadania — um “gesto simbólico muito importante” para reparar uma injustiça cometida contra aquele que o então embaixador da República Checa em Paris, Petr Drulak, considerou “o melhor escritor” do país.
Entre as obras de Kundera estão também O Livro dos Amores Risíveis (1969), A Vida Não é Daqui (1973), A Valsa do Adeus (1976), O Livro do Riso e do Esquecimento (1979), A Arte do Romance (1986), A Imortalidade (1990), Os Testamentos Traídos (1992), A Ignorância (2000) e a A Festa da Insignificância (2014).
Assim escreveu a jornalista Isabel Lucas sobre o escritor, num texto publicado no Ípsilon em Abril do ano passado: “O romance é a sua casa, a sua terra, a sua razão de viver, o seu modo de pensar o mundo. Substitui-se a uma ideia de pátria, substitui-se mesmo à língua, já que Kundera deixou de escrever em checo e passou a fazê-lo em francês a partir do momento em que lhe foi tirada a nacionalidade por críticas ao regime comunista. Era a medida derradeira. Depois das críticas directas ao partido de que fizera parte na juventude, depois da afronta para o regime que constituiu a publicação do romance A Brincadeira, em 1967, depois de Kundera ter sido impedido de dar aulas de literatura em Praga. Foi para França em 1975 sem saber que o abandono da então Checoslováquia seria para sempre.”
“A história deu razão a Milan Kundera”
A Dom Quixote, a sua editora de sempre em Portugal, editou este mês Um Ocidente Sequestrado - Ou a Tragédia da Europa Central, livro que reúne dois textos escritos antes da queda do Muro de Berlim e do fim da Guerra Fria. São eles o discurso de Milan Kundera no Congresso dos Escritores da Checoslováquia de 1967, durante a Primavera de Praga, e um artigo publicado na revista francesa Le Débat, em Novembro de 1983.
“Estes textos debatem corajosamente as ameaças que pesam sobre a Europa e a sua identidade cultural, a necessidade de liberdade e autonomia dos criadores artísticos contra uma cultura de propaganda e contra a censura, o papel da barbárie na vida das nações e dos seus povos”, lê-se na sinopse da editora. “São surpreendentemente premonitórios, como acontece muitas vezes com os grandes escritores. Passos importantíssimos foram dados na construção dessa Europa livre e democrática, e a história deu razão a Milan Kundera: as ‘pequenas nações’ centro-europeias integram agora esse mundo fundado numa cultura livre e respeitadora das línguas e tradições dos povos que as compõem. Mas as ameaças estão de novo bem à vista, com o ressurgimento das ideias censórias e autoritárias e com a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022. As batalhas por essa Europa sonhada por Kundera voltam à primeira linha das nossas preocupações.”
Uma pessoa importante no percurso de Milan Kundera foi Philip Roth. O romancista americano, pessoa fascinada por Franz Kafka que no início dos anos 1970 passou uma temporada em Praga — onde conheceu e se tornou amigo de vários escritores checos —, foi o editor-geral da Writers from the Other Europe (tradução livre: Escritores da Outra Europa), série de reedições de obras europeias que a Penguin Books manteve entre 1976 e 1983. Foram publicados 17 títulos, incluindo quatro de Kundera: A Valsa do Adeus, O Livro do Riso e do Esquecimento, O Livro dos Amores Risíveis e A Brincadeira.
A publicação de A Insustentável Leveza do Ser (1984 na primeira versão, em francês) confirmou o estatuto de Kundera como uma estrela internacional. Romance sobre sexo, amor e liberdade cuja história se desenrola no período antes e após a ocupação soviética da Checoslováquia, tem como personagem principal Tomas, cirurgião imensamente dedicado ao seu trabalho — e um mulherengo.
“A hostilidade é o factor comum em toda a escrita de Kundera sobre mulheres”, argumentava, em 1989, a autora Joan Smith no livro Misogynies: Reflections on Myths and Malice, citado pelo New York Times. “Outros críticos”, aponta este jornal, “consideravam que expor o comportamento horrível dos homens era pelo menos parte da intenção” de Kundera”. “Ainda assim, mesmo as mulheres mais fortes nos seus livros de Kundera tendiam a ser objectificadas.”
“Kundera interessava-se por grandes temas — sexo, vigilância, morte, totalitarismo. Mas os seus livros abordavam-nos sempre com um sentido de humor, uma certa leveza”, sugere a NPR, como que aludindo ao título da sua obra mais célebre.
“Não me sinto confortável no papel do dissidente”
“Ser escritor não é pregar uma verdade, é descobrir uma verdade”, afirmou Milan Kundera em 1986, numa rara entrevista ao New York Times. Nessa conversa, diria também: “Só uma obra literária que revela um fragmento desconhecido da existência humana tem uma razão de ser.”
Também reflectiria sobre a sua protecção da privacidade: “Quando era um menino, sonhava com uma pomada milagrosa que me tornaria invisível. Depois tornei-me adulto, comecei a escrever e quis ter sucesso. Agora tenho sucesso e, novamente, gostaria de ter a pomada da invisibilidade.”
Há quem o veja como “o intelectual de referência entre os dissidentes do Leste da Europa na fase do comunismo totalitário”, escreve o jornal espanhol El País, que lembra nesta quinta-feira uma conversa que teve com o autor em 1982. Afirmava então o checo: “Não me sinto confortável no papel do dissidente. Não gosto de reduzir a literatura e a arte a uma leitura política. A palavra ‘dissidente’ significa assumir uma literatura de tese, e se há algo que eu odeio é isso. O que me interessa é o valor estético. Para mim, literatura pró-comunista ou anticomunista é, nesse sentido, a mesma coisa. É por isso que não gosto de me ver como um dissidente.”
Em 2009, causou controvérsia, quando assinou uma petição defendendo a libertação do realizador polaco Roman Polanski. O cineasta, autor de filmes como Chinatown (1974), O Inquilino (1976) ou A Semente do Diabo (1968), havia então sido preso na Suíça, onde em 1975 alegadamente violou uma jovem de 13 anos — Polanski sempre contestou as acusações.
Um ano antes, uma polémica diferente no percurso de Kundera. A revista checa Respekt deu conta de uma investigação que estava a ser levada a cabo para apurar se Kundera havia, em 1950, denunciado aos serviços secretos da Checoslováquia o paradeiro de um desertor: Miroslav Dvoracek, alguém que fugiu do país para não ter de se alistar na infantaria e que, entretanto, teria regressado enquanto membro de uma agência de espionagem anticomunista, montada por exilados checoslovacos. Kundera rejeitou as acusações.
O New York Times conta que, com a Revolução de Veludo anticomunista de 1989, os livros de Kundera voltaram a circular na República Checa “pela primeira vez em 20 anos”, mas lá havia “pouca procura ou simpatia pelo autor”. “Muitos checos viam-no como alguém que havia abandonado os seus compatriotas”, relata o jornal.
“Dizer que a relação de Kundera com o lugar onde nasceu era complexa seria um eufemismo”, sublinha o France 24. “Ele voltou à República Checa poucas vezes e de forma incógnita, mesmo após a queda da ‘cortina de ferro’. As suas obras finais, escritas em francês, nunca foram traduzidas para checo.”