Estamos quase a salvar o planeta!
Imbuídos de um espírito comunitário, planetário e verdadeiramente altruísta, os países mais desenvolvidos e industrializados, as maiores economias mundiais, estão cada vez mais próximos de garantir esse feito fundamental de salvar o planeta! Um dos maiores objetivos das últimas décadas parece cada vez mais possível. Isto porque, tendo em conta que a maior ameaça ao planeta é a ação humana, a extinção de apenas uma espécie garante que o planeta é salvo. Infelizmente, essa espécie é a nossa: a espécie humana. Apesar de ser dito que é urgente salvar o planeta, a verdade é que a verdadeira corrida é para nos salvar a nós.
Quando todos os dados e estudos apontam para alterações climáticas extremas e a um ritmo cada vez mais rápido, todas as medidas, ações e metas apontadas como urgentes e fundamentais são adiadas, revistas e reduzidas. Compromissos pelo clima, pela biodiversidade, pelo oceano são definidos, assinados e aprovados apenas para voltarem a ser revistos e adiados, quase com um encolher de ombros e um “sabe, é a vida, não está fácil...”. E não está mesmo, e vai piorar… Clima mais extremo com eventos desastrosos e recordes de temperatura ultrapassados de forma assustadora no mar e em terra já não é ficção ou enredo de filmes, são as notícias atuais transmitidas diariamente.
É perante este cenário que se discute na Europa, e se votou hoje, a proposta da Lei de Restauro de Natureza, uma lei que vem complementar a já existente Lei do Clima. As duas formam um eixo fundamental do pacto ecológico, aposta da Comissão Europeia e apoiado pela maioria dos Estados-membros num exemplo de liderança mundial nas medidas necessárias para assegurar as mudanças imprescindíveis à continuidade da nossa espécie neste planeta.
Esta lei pretende criar metas de recuperação de habitats, responsabiliza os países pelo efetivo cumprimento dessas metas e procura orientar as mudanças estruturais fundamentais. É por isso alvo de grande debate, apoio e contestação. Infelizmente, no mundo em que vivemos, mesmo os mais importantes debates rapidamente se assemelham a uma caixa de comentários de redes sociais onde as opiniões se atiram muitas vezes sem suporte ou fundamento, apenas para alcançar os seus objetivos mais ideológicos do que racionais, em apoio de alguns em vez de procurar o bem comum.
Em pleno Parlamento ou nos meios de comunicação, temos eurodeputados a dizer que nas áreas da Rede Natura 2000 são proibidas atividades humanas e apenas servem para tráfico de droga ou quase a jurar a pés juntos que madeira morta na floresta é que causa incêndios florestais. Na verdade, os argumentos passam muitas vezes por opiniões mais ou menos pessoais e mais ou menos elaboradas, onde o fundamento técnico e científico é escasso ou nulo. Os estudos, e dados, que são diariamente apresentados, validados pela comunidade científica, são considerados “opiniões subjetivas”, ao nível do “diz-que-diz-que” ou do “vi no YouTube”. Esta falta de seriedade levou a comunidade científica, geralmente com um perfil mais discreto em questões políticas, a apresentar uma declaração suportada por mais de 6000 cientistas, apoiando esta lei e desmontando muitos dos argumentos falsos apresentados.
Numa sociedade onde a falta de ética e a desinformação vão fazendo escola na classe política, o afastamento do comum cidadão é crescente e a perceção destas decisões fundamentais torna-se difusa e distante, ou quase a um nível do debate clubístico, em que a capacidade crítica é cada vez menor.
O maior grupo parlamentar atual, o EPP, após discutir a proposta, decidiu que este podia ser um momento de rutura e que podia ir buscar votos importantes para as eleições europeias de 2024, apresentando-se como defensor dos agricultores, pescadores e produtores florestais que são ameaçados pelo “papão da Natureza”. A ideia de que recuperar uma parte das florestas, turfeiras, rios ou zonas marinhas é uma ameaça ao nosso modo de vida e economia é deveras estranha, tendo em conta que todas as atividades ligadas à agricultura, pesca e florestas são por necessidade e pela sua natureza dependentes de uma Natureza resiliente e em equilíbrio.
Numa declaração de ontem, o PSD, cujos deputados estão contra, vem quase reduzir esta lei a uma questão de madeira no solo, erradamente associando a presença de madeira morta (um indicador das florestas de conservação) ao aumento dos incêndios como se estivesse a ser considerada a obrigação de manter pilhas de madeira seca em áreas de exploração florestal. Tirando frases do contexto e sem necessidade de defender tecnicamente ou cientificamente os comentários feitos, estas “verdades” são repetidas e multiplicadas, numa forma de autovalidação. Não quer dizer que esta lei, como todas as outras, não possa ser melhorada e revista de forma mais consensual, mas que isso não a reduza a um mero pró-forma sem reflexos significativos nas mudanças que são necessárias.
Outra crítica referida é que a recuperação da natureza proposta por esta lei vem ameaçar a economia europeia e a capacidade de produção de alimentos. Parece que o investimento feito para recuperar uma floresta ou uma pradaria marinha implica dar dinheiro aos peixes, ou enterrar notas na serra. A recuperação de habitats é um investimento nas pessoas, nas economias locais, sustentando negócios existentes e promovendo o aparecimento de outros, criando emprego e inovação, e fixando populações, ao mesmo tempo contribuindo para ar e água de qualidade, melhores solos, maior capacidade produtiva, fixação de carbono, temperaturas mais amenas, etc.. Portugal tem bons exemplos de como o investimento na Natureza é desde o início um investimento nas pessoas. E não, no contexto europeu, recuperar habitats não é deixar milhares de hectares ao abandono. A recuperação de áreas naturais saudáveis e sustentáveis implica uma manutenção e atenção ao longo do tempo com um aumento da capacidade de gestão e melhoria de conhecimento e metodologias.
À escala do universo, a nossa existência é menos de um grão de areia. O planeta e o universo lá continuarão a sua história com ou sem a nossa presença. O esforço de muitos para proteger ecossistemas, reduzir o impacto no ambiente ou implementar sistemas mais sustentáveis é um esforço para garantir que continuamos a poder satisfazer as nossas necessidades, mesmo as mais básicas. Ar, água e solo de qualidade são essenciais para a nossa sobrevivência. Quase tudo o resto vem por acréscimo. Podemos salvar o planeta, mas era muito bom não ter de extinguir a nossa própria espécie para o conseguir.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico