Lei do Restauro por um fio num Parlamento Europeu dividido. Até Greta veio protestar

Hemiciclo europeu prepara-se para acolher na quarta-feira uma votação renhida sobre a Lei do Restauro da Natureza. Na véspera, Estrasburgo acolheu manifestações de ambas as partes e transpira tensão.

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A activista climática sueca Greta Thunberg veio a Estrasburgo manifestar-se a favor da Lei do Restauro da Natureza JULIEN WARNAND/EPA
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A manhã prometia alguma confusão à porta do Parlamento Europeu, onde duas manifestações foram marcadas para defender posições opostas em relação à Lei do Restauro da Natureza, uma proposta legislativa da Comissão Europeia para recuperar 20% dos habitats degradados até 2030 e que será alvo de uma votação renhida nesta quarta-feira ao final da manhã, na última sessão plenária antes das férias de Verão.

A jovem Lea Kauffmann, de 25 anos, chegou cedo à entrada principal do Parlamento Europeu, depois de ver nas redes sociais que haveria um protesto. Rodeada de agricultores que gritavam “assim, não!”, o vestido verde garrido e o olhar desconfiado deixavam pistas de que não estaria no lugar certo — ao identificar um eurodeputado do grupo d’Os Verdes, lá percebeu que era preciso andar mais uns metros, para lá do cordão policial, para encontrar a manifestação em defesa da Lei do Restauro da Natureza.

“As pessoas estão aqui — eu estou aqui — porque estamos cansadas de adiamentos dos planos para realmente combater as alterações climáticas”, desabafa a jovem. Não está envolvida em nenhuma associação ou partido político, mas diz ser “muito sensível à causa ecológica”. Vê os tempos que correm como “uma fase crítica para a humanidade”. “São 8h da manhã e já estamos a morrer de calor. E vai ficar ainda pior!”

A proposta da Lei do Restauro (ou da Restauração) da Natureza tem sido estranhamente explosiva. “Explosiva” porque, sob influência do Partido Popular Europeu (PPE), foi rejeitada nas três comissões parlamentares onde foi analisada, incluindo a comissão de ambiente, onde a votação principal teve mais de duas mil emendas e culminou num empate técnico — ou seja, deitando por terra o trabalho dos eurodeputados e propondo que o plenário rejeite a proposta da comissão. “Estranhamente” porque, até hoje, as quase 30 propostas decorrentes do Pacto Ecológico Europeu foram aprovadas, ainda que muitas tenham passado com ambições reduzidas. Sendo as questões ambientais quase unânimes entre as preocupações dos europeus — o restauro da natureza está entre as acções que os cidadãos consideram mais importantes para proteger a biodiversidade — e defendida afincadamente por cientistas de várias áreas, o boicote do PPE tem levantado várias questões sobre as motivações para rejeitar uma lei basilar para o futuro do nosso bem-estar no planeta.

Lea Kauffmann lamenta que os liberais e grande parte da direita queiram recusar “um texto que pretende respeitar os objectivos do pacto ecológico europeu”. Residente em Estrasburgo, deixa uma palavra ácida a Emmanuel Macron, que alinha com a ideia de colocar as leis ambientais da União Europeia numa pausa, por ser “demasiado difícil de acompanhar”. “Isto é tão hipócrita”, lamenta a jovem. “A determinado ponto temos de olhar para os factos e assumir que não fazemos o suficiente. O Pacto Ecológico é ambicioso e os eurodeputados que tenham um sentido de interesse comum deviam votar por ele.”

Greve climática

Na concentração pró-Lei do Restauro, o lugar central é ocupado pelo grupo de jovens do movimento Fridays For Future que vieram de vários países, viajando várias horas, na maioria dos casos navegando entre comboios, para chegar a Estrasburgo sem exagerar na pegada carbónica.

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Não faltou a jovem sueca Greta Thunberg, fundadora do movimento. Que palavra tem a dizer aos políticos que irão vetar esta lei? “Serão muito mal vistos no futuro, quando olharmos para trás, para estes anos tão decisivos”, alerta. “Isso é com eles. Ainda nos podem provar que estamos errados”.

Por perto, um grupo grita palavras de ordem. “Somos / a natureza / a defender-se / a si mesma!”. Uns metros ao lado, Gonçalo Carvalho, da organização portuguesa Sciaena, explica que veio a Estrasburgo entregar aos eurodeputados portugueses uma carta subscrita por nove ONG portuguesas onde apelam ao voto a favor da lei, defendendo que “Portugal tem tudo a ganhar com uma Lei do Restauro da Natureza ambiciosa”. Em Portugal, existem “inúmeros exemplos em terra e em mar onde a conservação e o restauro já está a acontecer com pescadores e agricultores envolvidos”. “Esta lei permitiria continuar esse caminho e até talvez ter melhor financiamento e ferramentas para fazer essa transição”, sublinhou Gonçalo Carvalho. Na carta, as ONG pedem que os políticos demonstrem um “compromisso claro para manter e consolidar o equilíbrio entre os ecossistemas saudáveis e a prosperidade das populações que deles dependem”.

Umas dezenas de metros à frente, do outro lado do cordão policial, o jovem alemão Benedikt Bergmann, de 15 anos, veio com os tios e o primo acompanhar a manifestação promovida pela COPA-COGECA, um grupo de interesse que reúne organizações agrícolas e defende os interesses dos (grandes) agricultores europeus. Quer ser agricultor e continuar a trabalhar nas terras que “estão há 600 anos na família”. Foram seis horas de viagem desde Niederrhein, quase na fronteira com os Países Baixos, até Estrasburgo para protestar com o tio contra uma lei que, acreditam, vai prejudicar “a agricultura no futuro”. Repetindo os argumentos defendidos pelo PPE relativos à ameaça à segurança alimentar, defende que “se não produzirmos milho aqui, temos de importar da América do Sul e de outros países”. “Há muitas pessoas para alimentar, precisamos de agricultura aqui”, afirma. Ao lado, o tio, Christian Schulte Spechtel, de 53 anos, reforça a mensagem: “Precisamos de produzir comida para a Europa. Não queremos produzir comida na América do Sul e pô-la num navio para a Europa.”

A manifestação da COPA-COGECA segue animada. Há distribuição de pequeno-almoço. Ao longo de uma parte da estrada, uma fila dupla de tractores reúne quase 40 veículos prontos para chamar a atenção para a mensagem: “Pas de nature sans agriculture” (“não há natureza sem agricultura”). Ao centro, um palco decorado com fardos de palha e várias bandeiras recebe os protagonistas da manifestação. Depois da visita de Manfred Weber, o presidente do Partido Popular Europeu e grande arquitecto do bloqueio à Lei do Restauro da Natureza, seguem-se discursos dos representantes das organizações e também de eurodeputados que querem a rejeição do diploma. As visões de mundo não poderiam ser mais diferentes — a começar pela forma como interpretam o calor abrasador às 9h da manhã. “Está uma bela manhã em Estrasburgo, e quarta-feira será um belíssimo dia”, afirmou o eurodeputado finlandês Petri Sarvamaa, do grupo dos democratas-cristãos.

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Protesto em Estrasburgo nesta terça-feira JULIEN WARNAND/EPA

“Meias medidas”

Às 9h, já sob o ar condicionado do hemiciclo, a ordem de trabalhos arranca com um debate sobre a Lei do Restauro. “Finalmente vamos ter um debate sossegado sobre a natureza e vou tentar convencer-vos”, começou por dizer o socialista espanhol César Luena, relator da proposta do Parlamento Europeu chumbada na comissão de Ambiente, enumerando em seguida três razões para apelar a um voto favorável ao diploma que tanto acarinhou: “Pelo futuro”, tendo em conta que a recuperação de ecossistemas e habitats é essencial; “pelo papel do Parlamento Europeu”, que Luena defende que não deve ser um obstáculo à “primeira legislação com aplicação directa sobre a natureza”; e “para a história”, deixando duras críticas à “viagem bem perigosa” de Manfred Weber.

Virginijus Sinkevičius, comissário europeu para o ambiente, oceano e pescas, afirmou que o debate à volta da Lei do Restauro, desde as primeiras consultas públicas antes da proposta da Comissão até ao forte apoio demonstrado nos últimos meses, “mostrou muito claramente que há um largo consenso sobre o facto de precisarmos de restaurar a natureza e que podemos discutir construtivamente e encontrar soluções sobre como o fazer”.

“Soluções climáticas sem soluções naturais são apenas meias medidas”, alertou. “As consequências das crises do clima e da biodiversidade estão a tornar-se cada vez mais visíveis também aqui na UE”, alertou o comissário lituano. “Já afectam quase todos os cidadãos e todos os sectores da economia, e estão entre as maiores ameaças à resiliência de longo prazo da segurança alimentar europeia.”

Durante o debate, o alemão Manfred Weber esteve ausente do hemiciclo. A explicação: cerca das 9h30, na sala de imprensa, iniciava, ao lado da neerlandesa Esther de Lange, da comissão de ambiente, uma conferência com jornalistas cheios de questões.

“Só podemos aplicar Paris e Montreal com os cidadãos”, sublinhou Weber, que deixou a maior parte das respostas sobre a Lei do Restauro para a colega do PPE. Mas ainda quis reforçar dois pontos: que “o PPE não é contra o restauro da natureza”, um mantra que foi repetido ao longo do dia por todos os membros do grupo; e que o próprio Emmanuel Macron, do partido Renaissance (integrado no Renew), defende o debate sobre a moratória, propondo um travão a leis ambientais ambiciosas porque “nos próximos cinco anos temos de nos preocupar com a nossa competitividade”, para que a Europa não perca poder económico.

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Para Esther de Lange ficou a pergunta mais difícil: o que seria, afinal, uma “boa proposta” da Comissão Europeia? Para começar, “uma que não seja escrita num silo”. “Esta lei tem ‘Direcção-Geral de Ambiente’ escrita por todo o lado”, ironiza a eurodeputada. “E o mundo real não é assim”, acrescenta, notando a necessidade de incluir as prioridades económicas e de sectores como a agricultura. Havia, reconhece, um desafio de recuperar território na sequência do acordo de Montreal na COP da Biodiversidade, no final do ano passado. Mas, ao invés de “traduzi-la para a Europa, o que a Comissão fez foi fazer mais”. Por fim, a lei carece ainda de um travão de emergência que assegure aos Estados-membros gerir os seus projectos nacionais, dando o exemplo dos Países Baixos, onde as protecções garantidas pela rede Natura2000 (de habitats em risco) estão a dificultar a expansão de projectos de energias renováveis. “Nós temos problemas com a posição do Conselho”, declarou Esther de Lange, peremptória. “Não vamos apoiar isto.”

Tensão

Nos corredores do Parlamento Europeu, a inquietação é quase palpável. Nos bares do edifício, num ou noutro canto, grupos de jornalistas reúnem-se à volta de eurodeputados dos seus países em briefings para compreender melhor as implicações da aprovação ou da rejeição da lei. Assessores de imprensa, em particular os do PPE, respondem às questões mais duras, com conversas algumas vezes acaloradas nos corredores.

Poucos fazem apostas sobre o resultado da votação final, que poderá ter até três etapas: o início será dedicado à votação da proposta de rejeição da Comissão de Ambiente. Se a proposta tiver maioria, a Lei do Restauro da Natureza fica por ali. Caso essa proposta de rejeição seja ela mesmo rejeitada, uma segunda oportunidade de consenso será a proposta avançada pelo grupo Renew, que replica a “abordagem geral” aprovada pelo Conselho da UE para as negociações (que implicam uma grande perda de ambição da lei), numa tentativa de seduzir eurodeputados liberais ou mais conservadores com a proposta de maior flexibilidade. Caso a rejeição seja rejeitada, é provável que esta proposta seja aprovada. Por fim, é chegada a hora das emendas: há mais de 130 propostas de alteração de pontos específicos do texto a ser aprovado. Aí, contudo, é mais provável que, encontrado o consenso — e o alívio — no pacote do Renew, haja poucas emendas com possibilidade de serem aprovadas.

No átrio à saída do hemiciclo, o eurodeputado do PCP João Pimenta Lopes, que acompanhou o percurso da Lei do Restauro na comissão das pescas e na do ambiente, lamenta a “grande polarização” que se gerou, em particular na votação da comissão de ambiente (na qual é suplente), que “não ajuda a uma análise séria” da complexidade do diploma. “É preciso não nos enquistarmos em posições de preto e branco”, afirma, relembrando que a proposta da Comissão, tendo “um objectivo que é positivo e com o qual estamos comprometidos”, estava longe de ser perfeita. A proposta do Conselho, que os deputados vão tentar duplicar, fica ainda mais aquém do que é necessário — mas, mesmo assim, será essa a posição que a esquerda votará.

Mas não deixará passar sem uma última tentativa de melhoria. O eurodeputado comunista explica que a proposta da Comissão (e também a do Conselho) “salvaguarda uma excepção à implementação destes elementos de restauro no caso de projectos de interesse público superior”, como o são as energias renováveis, dispensando-os de avaliação de impacto ambiental. João Pimenta Lopes tentará, assim, fazer com que “todos os projectos tenham de ter uma avaliação de impacto ambiental”, diz. “Não basta a definição de metas. É necessário um olhar sobre quais são os meios dos estados membros para levar em diante estes objectivos, e para o caminho que foi feito para o estado de degradação em que estamos hoje.”


O PÚBLICO viajou a convite do Parlamento Europeu