Faz nesta terça-feira 1000 dias que a Comissão Europeia se comprometeu, em 2020 a fazer uma reforma das regras de autorização e utilização de substâncias químicas no espaço europeu (o regulamento REACH) que aumentasse o nível de protecção da saúde e do ambiente, com uma ambição mais ao nível do Pacto Ecológico Europeu. Mas há documentos que parecem indicar que a Comissão vai ficar muito aquém do prometido, indo de encontro às exigências do poderoso lobby da indústria química, denunciam organizações ambientais europeias.
Várias organizações não-governamentais (ONG) europeias obtiveram, ao abrigo de legislação da liberdade de informação, um documento da Comissão Europeia que avalia o impacto que a revisão da legislação terá, em termos de custos para a indústria e benefícios para a sociedade.
O Gabinete Europeu do Ambiente (EEB, na sigla original) e a ChemTrust denunciam que este documento sugere que a Comissão Europeia está a considerar cenários em que reduz químicos perigosos só de 50% dos bens de consumo. Mas também estão em consideração cenários em que apenas 10% ou 1% dos produtos que há no mercado serão abrangidos, denunciam estas organizações.
O projecto HBM4EU (Iniciativa Europeia de Biomonitorização Humana” decorreu durante cinco anos (terminou em 2022) e juntou 116 agências governamentais, laboratórios e universidades de países como Portugal. O objectivo era avaliar o nível de exposição da população europeia a 18 produtos e grupos de químicos e este trabalho trouxe números alarmantes, que revelam que os cidadãos europeus estão muito expostos a substâncias químicas em níveis que podem ser perigosos.
“Em 2020, cerca de 230 milhões de toneladas de substâncias químicas prejudiciais à saúde foram consumidas na União Europeia, incluindo 34 milhões toneladas de químicos” que podem causar ou promover cancros, provocar mutações genéticas e prejudicar o processo reprodutivo”, disse Marike Kolossa-Gehring, numa conferência de imprensa na Alemanha em que foram apresentados os resultados finais do projecto HBM4EU.
Os resultados desse projecto deviam ser uma base para a reforma do regulamento REACH. “Só com uma reforma do regulamento é que a UE pode cumprir a sua obrigação de atingir um alto nível de protecção [dos cidadãos] e evitar poluição maciça”, disse ao Azul, por e-mail, Stefan Scheuer, responsável da ONG ChemTrust ao nível europeu. Isso torna prioritário que as substâncias químicas mais perigosas sejam interditas nos produtos fabricados para o consumo geral da população, sublinhou.
O documento de avaliação de impacto da revisão do REACH (regulação, registo, avaliação, autorização e restrição de substâncias químicas) reduz o âmbito de produtos em que o uso de químicos como o bisfenol A (BPA), por exemplo, deve ser proibido.
Redução da ambição
Pensava-se que todos os produtos seriam abrangidos, dizem as ONG. Mas este documento de avaliação do impacto da revisão do regulamento REACH indica que serão visados apenas os produtos em que há um maior grau de exposição dos seres humanos aos químicos perigosos.
São considerados vários cenários, em que o mais ambicioso reduziria para metade o número de produtos de consumo que contêm as substâncias químicas mais perigosas. “Isto não é a proibição ampla prometida em 2020”, dizem o EEB e a ChemTrust, em comunicado.
O cenário menos ambicioso é um corte de apenas 1%; o médio é de 10%. “É comum que a Comissão Europeia opte pelo cenário médio, e raramente decide por outras hipóteses [não mencionadas na avaliação de impacto]”, de as ONG.
“Os impactos na saúde relacionados com o enfraquecimento da proibição dos químicos mais perigosos nos produtos de consumo citados no documento da Comissão são: infertilidade, obesidade, asma, doenças neurológicas e cancro”, explicou ao Azul Tatiana Santos, do Gabinete Ambiental Europeu, uma das organizações que está a dar este alerta sobre a definição da política europeia para as substâncias químicas.
Se apenas 10% dos bens de consumo forem abrangidos pela legislação europeia, continuarão no mercado 90% dos produtos, com substâncias químicas que podem desregular o sistema endócrino, causar várias doenças e alergias, sublinhou.
Extractos do documento que foram apagados no texto sobre a avaliação de impacto, mas que foram passadas às ONG, indicavam que os benefícios para a saúde humana em evitar obesidade, cancro, asma, infertilidade e outras doenças seriam dez vezes superiores aos custos directos para a indústria química de proibir os químicos mais perigosos dos artigos de consumo, denuncia o comunicado da ChemTrust e do EEB.
Lobby da indústria química
Os custos para a indústria química seriam no máximo 2700 milhões de euros, enquanto os benefícios em termos de saúde humana poderiam chegar a 31 mil milhões de euros – isto num período de 30 anos, calculam as ONG.
As organizações ambientais vêem aqui a influência da indústria química sobre a Comissão Europeia. “Nos últimos meses, poderosos lobbies industrias tentaram instrumentalizar a guerra na Ucrânia e a crise energética que desencadeou para atacar a agenda ambiental europeia”, salienta Tatiana Santos. “Em particular, a indústria química alemã tem feito pressão para que a Comissão Europeia atrase e aligeire os seus compromissos ambientais”, continua.
“As associações industriais alemãs (VCI e BDI) mobilizaram-se em Setembro de 2022 para fazer lobby contra a revisão do regulamento REACH, dizendo que é preciso responder à recessão e ‘não estamos numa altura para fazer experiências’”, relata Tatiana Santos.
A federação das indústrias químicas alemã (VCI) diz que o Pacto Ecológico Europeu lançado pela Comissão “é negligente”. Segundo a activista, “apelou a que seja adiada legislação para combater poluição, como a Estratégia da UE para os produtos químicos rumo a um ambiente mais sustentável e sem substâncias tóxicas, controlos de emissões e taxas e carbono. Isto para aliviar ‘o fardo da regulação’ e poder ‘suportar melhor os impactos da guerra na Ucrânia”.
Os ambientalistas defendem ainda que o Partido Popular Europeu também está a posicionar-se para travar a agenda ambiental: “Parece ser também influenciado pela indústria, pois diz ter por objectivo aliviar o alegado fardo da indústria”, completa Tatiana Santos.
No entanto, dados do organismo de estatística da União Europeia, o Eurostat, mostram que a indústria química europeia aumentou as vendas nos últimos dez anos em 232 mil milhões de euros, dizem a ChemTrust e a EBB. “A indústria química é o quarto maior sector industrial europeu e é o que investe mais em fazer lobby na União Europeia “, dizem as duas organizações, citando um relatório do grupo de campanha contra as influências indevidas no processo de decisão europeu Corporate Europe Observatory.
“O atraso da reforma do regulamento REACH é um falhanço da Comissão Europeia. Sabemos que está sob pressão de partes da indústria química, que está a tentar manter um status quo que faz mal aos seres humanos e ao planeta. Mas a Comissão deve ultrapassar estes lobbies e fazer a coisa certa, publicando em breve uma proposta forte e eficaz para a revisão do REACH”, afirmou a activista pelo ambiente. Quanto mais tarde o fizer, mais hipóteses existem de esta revisão não ser feita antes das próximas eleições europeias, e de esta tarefa passar para a próxima Comissão Europeia.
O bisfenol em Portugal
A situação é má para todos os químicos analisados no âmbito do projecto HBM4EU . Por exemplo, o já citado bisfenol A (BPA). “Dependendo do tipo de químicos, a situação varia geograficamente”, disse ao Azul Tatiana Santos. Em Portugal, o BPA é um problema. “Os níveis mais elevados de BPA detectados na urina encontram-se no Luxemburgo e a seguir em Portugal”, diz Tatiana Santos.
Para algumas substâncias químicas nocivas, foram desenvolvidas outras para as substituir. Mas essa pode ser uma “substituição lamentável”, como dizem as ONG ambientais, ou seja, podemos acabar por deixar de usar uma substância que se sabe fazer mal, mas está regulamentada, para utilizar outra semelhante, mas para a qual não há regulamentação e que pode ser igualmente perigosa. Esta “substituição lamentável e é uma prática muito comum e perversa da indústria química há décadas”, frisa Tatiana Santos.
Para substituir o BPA usa-se o bisfenol S (BPS), que os ambientalistas também dizem que está associado a obesidade e cancro da tiróide. Um dos estudos do projecto HBM4EU concluiu que França e Portugal são os países em que as pessoas apresentam os níveis mais elevados de contaminação com BPS, salienta Tatiana Santos. “Na verdade, Portugal tem a maior porção de pessoas contaminadas com BPS, em níveis elevados”, sublinhou.
A principal via de exposição humana aos bisfenóis parece ser através da alimentação. Podem ter migrado para os alimentos ou bebidas a partir de recipientes para alimentos, embalagens ou biberões, indicam os resultados do projecto HBM4EU. Se continuarem a estar presentes em muitos objectos do quotidiano, continuaremos a ser contaminados.