As abastadas

As senhoras abastadas iam directamente a estas fábricas de criadas, e do alto dos seus sapatos, com a mala pendurada no antebraço, apontavam a unha envernizada do indicador.

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As senhoras abastadas chegavam de carro, o motorista acompanhava-as à porta, inspeccionavam as meninas, faziam perguntas sobre elas, inquéritos minuciosos sobre o feitio, a postura e a etiqueta e, por vezes, levavam uma para serem criadas no solar das beiras, ou no palacete de pedra do Minho, ou na herdade alentejana, para lavar o chão para limpar o pó para regar as rosas e as hortênsias para cozinhar para que os homens da casa não precisassem de frequentar bordéis infectos e apanhar doenças para passearem os cães para empurrarem a cadeira de rodas do doutor reformado para serem um dia elogiadas pela capacidade de confeccionar um arroz doce palatável. As senhoras abastadas iam directamente a estas fábricas de criadas, e do alto dos seus sapatos, com a mala pendurada no antebraço, apontavam a unha envernizada do indicador na direcção de uma das meninas e levavam-na para casa. As senhoras abastadas planeavam, enquanto voltavam a casa, os passos seguintes, a integração no seu lar de um corpo estranho e escanzelado com sotaque de província. Seria então necessário mandar costurar uma farda, pedir à velha criada que desse um banho à rapariga (como passaria a ser chamada) e lhe penteasse os cabelos e lhe ensinasse modos e idiossincrasias familiares. As senhora abastadas, absortas nas suas necessidades, sentadas junto das novas criadas no banco de trás de um Mercedes com estofo de couro, mantendo um semblante grave, solene, observavam a paisagem pela janela do carro, nunca olhavam para as meninas que levavam consigo (talvez um fugaz deslize pelo canto do olho), as meninas que reprimiam um sorriso de felicidade por finalmente terem uma casa, um quarto só para elas, uma família, as meninas que só pensavam na alegria e fortuna que viviam naquele instante, os joelhos encostados, os pés com as pontas a tocarem-se, os calcanhares afastados, o olhar tímido, as mãos entrelaçadas no colo, o sorriso a querer aparecer constantemente e a ser constantemente contido. Era assim que saíam da fábrica de criadas.

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