No espaço de duas semanas, duas camaradas — gosto da palavra "camarada", que me remete para a primeira redacção, em Lisboa, onde as secretárias, desordenadas, estavam submersas em pastas, documentos e folhas de telexes; onde os jornalistas da "velha guarda" gritavam e riam alto; onde um leve bater de asas podia dar mesmo origem a um furacão porque tudo era vivido com mais drama e o mundo do trabalho era menos asséptico. Repito, no espaço de duas semanas, duas camaradas presentearam-me com duas frases em tudo semelhantes.
"A moda, a mim, não me interessa nada", disse ríspida a primeira, na casa dos 40 e qualquer coisa. "Não percebo nada de moda", disse tímida a segunda, na casa dos 20 e qualquer coisa. À segunda, respondi com um sorriso condescendente, com a primeira tive uma daquelas discussões que me lembraram por que gosto da palavra "camarada".
Há esta ideia que moda é futilidade ou que é uma coisa feminina, logo, fútil; que dizer "eu não gosto, eu não percebo" não é sinal de ignorância, mas uma declaração de "eu sou uma pessoa séria, inteligente, respeitem-me". A verdade é que a moda existe desde que o primeiro humano se cobriu e, tal como desenhou nas paredes das cavernas também começou a desenhar o que vestia, simplesmente para tornar as suas vestes mais práticas ou também para as tornar bonitas — o que são as contas e os adornos encontrados nas sepulturas senão vestígios de que a beleza sempre nos cativou?
A moda ajuda-nos a compreender a história, por que fizemos determinados caminhos e não outros, o que pensámos em determinadas épocas — o que aconteceu às minissaias das mulheres iranianas, o que seria de Philippe Ariès e Georges Duby se não houvesse moda retratada em quadros, gravuras, em guarda-vestidos dos palácios, como conseguiriam escrever e documentar A História da Vida Privada?
Desde cedo que a moda nos ajuda a integrar na escola, onde procuramos os que se vestem da mesma maneira que nós, aqueles que serão do nosso grupo, que, à partida, terão os mesmos gostos musicais, cinematográficos e literários. Há até nomes de colectivos — os betos, os chungas, os punks, os góticos, os hipsters... — que nascem também por causa da moda. Desde cedo que a moda nos pode fazer sentir bem, mas também mal, pode mesmo interferir com a nossa auto-estima, logo, não é de uma futilidade que falamos.
Na ida a um exame oral, a maneira como estamos vestidos pode contribuir para ditar a nossa nota; tal como o que vestimos para ir a uma entrevista de emprego. Assim, como quando conhecemos alguém que queremos impressionar. A moda pode ajudar-nos a conquistar essa pessoa e não é preciso usar uma blusa decotada ou umas calças que marquem a silhueta, há simplesmente um je ne sais quoi.
Já vimos que a moda é história, é cultura, é sociologia, é antropologia, é arte, é psicologia e é também economia — uma grande e poluidora indústria, que tem de se regenerar, mudar de estratégia e tornar-se verde. Por isso, a moda é também notícia, porque é poluente, porque é uma indústria de milhões, porque recorre a trabalho infantil ou a trabalho escravo, porque há criadores que deixam de trabalhar, porque há marcas que declaram insolvência. Mas também porque é uma indústria criativa com rituais como as semanas da moda, onde as casas de luxo apresentam as suas colecções, como aconteceu esta semana, em Paris. É uma indústria que chega a todo o lado, até ao Papa, que vai vestir burel. É ainda uma indústria que chega a nossa casa em séries como Succession ou And Just Like That..., e nos faz sonhar.
A moda está sempre presente, de manhã à noite, do pijama à falta dele, da T-shirt à camisa engomada, do vestido à saia comprida, do biquíni ao fato de banho. Todos os elementos que vestimos dizem algo sobre nós, num simples "mostra-me o que vestes, dir-te-ei quem és". A moda marca também os momentos importantes da nossa vida, desde o dia em que nascemos — vestimos o babygrow que a avó bordou —, o que terminámos o curso, o que começámos a trabalhar, o que casámos, o que baptizámos os nossos filhos, o que enterrámos os nossos pais, ao dia em que morremos — escolhemos antecipadamente, não vão os nossos herdeiros estarem demasiado tristes, esquecerem-se e lá vamos nós com a camisa de noite do lar vestida. Em suma, dizer "a moda, a mim, não me interessa nada" é o mesmo que dizer "a vida, a mim, não me interessa nada".
Boa semana!