Céline Cousteau: “Estamos cada vez mais desligados da natureza”

A exploradora e autora de documentários pede que voltemos a ficar ligados connosco mesmos, para depois voltarmos a ficar mais ligados à natureza. E dá conselhos para que isso aconteça.

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Céline Cousteau tem feito documentários sobre a natureza e é uma exploradora. Tem sido conhecida pela sua actividade no mergulho Dani Mora
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Não é preciso estarmos muito tempo com Céline Cousteau para percebermos que ela gosta de criar uma ligação com quem fala. Quando nos sentamos à sua frente, para a entrevistar, recebe-nos com um sorriso e confessa que sabe falar, um pouco, português: “Aprendi português com os indígenas na floresta amazónica”, conta a sorrir.

A Amazónia é um dos sítios onde a exploradora Céline Cousteau tem feito documentários e aproveitado para conhecer melhor a natureza – e interligar-se com ela. “Não pertenço à Amazónia, mas parte dela está em mim e agora sei que preciso dela”, confessa, momentos antes de falar na conferência We Choose Earth, um evento organizado pela EDP, em Madrid, no mês de Junho.

Para o palco, a autora de documentários sobre o ambiente levou uma grande mensagem: a ligação com a natureza é essencial e devemos restabelecê-la, caso esteja interrompida. Para isso, temos de nos ligar connosco mesmos. Foi isso que tentou fazer logo no início da sua palestra.

Com o seu modo tranquilo, Céline Cousteau pediu que a assistência se levantasse. Depois, aconselhou que as pessoas pusessem as mãos onde se sentissem confortáveis. “Quem tem as mãos no coração? Algumas pessoas. Vejo um abraço!” – foi assim que se dirigiu à plateia. Tudo isto para dizer que devemos estar em consonância connosco, para também estarmos com a natureza – é dela que vem tudo o que precisamos para sobreviver. “Não há vida sem ar. Temos de respirar e tudo vem da natureza”, disse num momento de descontracção, em que deu para respirar fundo. “Tudo o que fazemos tem de estar ligado. Estamos interligados com tudo. Só por não estarmos no oceano, não quer dizer que não estejamos ligados ao oceano.”

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Manaus, Amazónia NELSON GARRIDO

Fazer com que as pessoas sintam e trabalhem essa ligação com a natureza (e consigo mesmas) tem sido uma das missões de Céline Cousteau, que estudou Psicologia e tem usado esse conhecimento para fortalecer esse trabalho. Só assim se poderá também combater as alterações climáticas. “É muito importante virarmo-nos para nós mesmos e sermos responsáveis pelas nossas acções no planeta”, disse, defendendo que todos termos de sentir que fazemos parte da solução.

Foi essa a mensagem que deixou na entrevista com o PÚBLICO.

Viaja pelo mundo para documentar em vídeo ou fazer sessões sobre as interligações da natureza e dos humanos. Actualmente, esta interligção está interrompida?
É uma boa pergunta [risos]. Nascemos num mundo ligado, mas pequenas peças têm sido desligadas à medida que progredimos. Mas penso que agora vamos tendo pessoas cada vez mais conscientes do que está a acontecer [ao nível do clima], porque há mais informação do que está a ocorrer à escala planetária. Mesmo assim, há mais pessoas que estão desligadas de si mesmas. Quando estamos desligados de nós mesmos, é mais difícil de nos ligarmos aos outros e à natureza. Grande parte do meu trabalho é introduzir elementos para que nos liguemos connosco mesmos e com a natureza.

Como nos podemos ligar outra vez connosco e com a natureza?
Voltarmo-nos a ligar com a natureza pode ser muito simples. Se vive numa cidade, pode ir para algum jardim. Lá, pode sentar-se, ficar encostado a uma árvore, descalçar-se, andar pela relva e aproveitar o momento. Aliás, está provado cientificamente que as pessoas ligadas à natureza são capazes de funções cognitivas mais complexas. Também ficamos com a capacidade de controlar as nossas emoções e de pensar melhor. Portanto, mesmo esses momentos simples ajudam a ligarmo-nos com a natureza.

Até olhar para fotografias da natureza pode ajudar. Já está provado que observar fotografias da natureza desperta mais ligações neurológicas no cérebro. Esta é uma forma muito simples de nos ligarmos com a natureza. Se alguém tiver a oportunidade de fazer algo mais, como ir para o oceano ou para um parque nacional, isso seria mesmo bom para o corpo, ao nível psicológico e para o cérebro.

Quais podem ser as consequências da falta de ligação com a natureza?
Há muitas consequências! No livro Last Child In The Woods, de Richard Louv, ele fala do transtorno do défice de natureza, que é algo que acontece quando não estamos ligados à natureza. Esse transtorno pode causar níveis de stress elevados, uma diminuição do funcionamento mental e há um transtorno do défice de atenção. Todas estas coisas são consequências da falta ligação com a natureza e que pode começar logo na infância. Aliás, pode constatar-se que o transtorno do défice de atenção tem-se tornado cada vez mais frequente e não é porque as crianças são piores do que as que tinham nascido antes. O grande motivo é porque estamos cada vez mais desligados da natureza.

Tudo isto tem consequências também para a natureza? Penso nas alterações climáticas causadas por nós...
Claro, se estivermos desligados da natureza não vamos compreender que ela faz parte de quem somos. Quando estamos desligados da natureza, vemo-nos a nós mesmos como uma parte independente da natureza. Mas não estamos separados da natureza! Façamos a comparação com os nossos sistemas internos do corpo: se órgãos do nosso corpo falharem, todo o nosso corpo é posto em risco. O mesmo acontece com a natureza. Se não nos virmos como uma parte do planeta, vamos estar sempre a dizer: o que é que isso importa?

Se vivo numa cidade, não posso partir do pressuposto de que não me vou importar com os oceanos, [porque não estou directamente ligada a eles]. Esta falta de ligação está permanentemente a acontecer. Somos apenas uma das espécies que vivem no planeta e não podemos viver sem a natureza. A alimentação, a água e o ar vêm da natureza. Estas são só três coisas de que o nosso corpo depende. Para mim, isto é tão simples que não consigo compreender como as outras pessoas não entendem. Se quisermos respirar, a natureza importa.

Nós, humanos, vivemos cada vez mais em cidades. Voltar a ter essa ligação com a natureza torna-se mais difícil, assim?
Penso que sim, porque não se vê a natureza todos os dias. Não se vê tanto a deterioração da natureza nas cidades. Nós, seres humanos, somos fascinantes, temos feito coisas incríveis e não somos maus. Apenas penso que não estamos a ver todo o cenário. Quando vivemos numa cidade, estamos a andar sobre o cimento, apanhamos elevadores e sentamo-nos numa secretária em frente a um computador.

Na verdade, não estamos a ver o oceano a deteriorar-se. Se não virmos um documentário ou algo do género, podemos nem se acreditar que isso está a acontecer. Se estivermos mesmo na natureza e a formos observando ao longo do tempo, vamos ver como o ambiente se está a degradar, que os recifes de coral estão a desaparecer ou que espécies estão a ser mortas devido à pesca excessiva. De outra forma, parecerá demasiado longe e não prestaremos a devida atenção.

Os nossos sentidos vão ficando desligados...
Os nossos sentidos estão silenciados. O volume dos nossos sentidos está muito baixo. É algo que percebo quando vou para a floresta amazónica e tenho contacto com indígenas. Lá, todos os meus sentidos estão mais despertos, porque não sou o elo mais forte do ecossistema, faço parte dele. Posso ser caçada e tenho de estar atenta ao que ouço, ao que vejo e aos que experimento ao nível do meu paladar. Tenho de estar mais atenta ao que acontece na natureza.

Num artigo no jornal The Guardian, em 2016, escreveu que tinha uma longa ligação com a Amazónia e os grupos indígenas. Quando começou essa ligação?
Tudo começou quando tinha nove anos. Depois voltei lá em 2007 e conheci indígenas no território do Brasil e é por isso que até sei um pouco de português. Aprendi português com os indígenas na floresta. Essa foi a primeira vez que estive com os indígenas nesse território e nem imaginava que fosse criar uma ligação tão grande com o lugar, mas eles pediram para eu voltar.

Voltei em 2010 e passei três anos a fazer filmagens para o filme Tribes on The Edge. Fazer esse filme foi difícil e testou a minha convicção. Tive de conquistar o meu lugar para contar a história. Não pertenço à Amazónia, mas parte dela está em mim e agora sei que preciso dela. Desde Novembro de 2019 que não consigo regressar lá por causa da pandemia de covid-19.

Mas vai lá voltar?
Vou lá voltar!

O que tem aprendido com estas experiências?
O que aprendi? Ou o que é que não aprendi? [risos] Há muitas lições de vida que podem sair de lá. Fizeram muitas partilhas de forma muito simples comigo. Vou contar uma situação que foi crucial para a minha evolução pessoal e humana. Em 2007, estava a entrevistar um indígena mais velho e perguntei-lhe como vivia de forma sustentável com o ambiente. Ele olhou para mim e ficou perturbado. Reformulei a pergunta e questionei-o como vive em equilíbrio e harmonia com a natureza. Ele continuou a não perceber. Entendi então que não era uma questão para ele, porque para ele não havia outra forma de o fazer. Mesmo assim, respondeu-me que quando cortava uma árvore, plantava logo outra para o neto do seu neto, ou, quando caçava, só o fazia em quantidades para alimentar a sua família. É o que temos de fazer, mas a um nível mais complexo. Temos de voltar a compreender que temos de viver em harmonia e equilíbrio com a natureza porque não há outra forma de sobreviver.

Que outro tipo de experiências foi tendo pelo mundo? Ou a Amazónia foi a grande experiência?
O mergulho tem sido uma experiência que me tendo dado imensa humildade. Sentimo-nos pequenos a olhar nos olhos de uma baleia-jubarte. Sentimo-nos indefesos, muito pequenos e humildes no imenso oceano. Muitas vezes, a natureza dá-nos uma lição de humildade e mostra-nos como somos insignificantes no planeta. Acho que nos põe no nosso lugar.

Quando e como aprendeu a ter esta ligação com a natureza?
Todos nascemos com essa ligação com a natureza. Apenas a perdemos porque não a fomentamos.

Disse que esteve na Amazónia com nove anos. Fomentou essa ligação logo quando era criança?
Estava muito tempo fora de casa e nunca passei um tempo interminável à frente dos ecrãs. Os meus pais diziam-me: “Vai brincar lá para fora.” É importante que todas as crianças brinquem na rua.

Que projectos está a desenvolver neste momento?
Estou a fazer muitos trabalhos ligados à transformação dos indivíduos e a ajudar pessoas a voltarem a ligar-se consigo mesmas – com a mente e o corpo. Algum desse trabalho está relacionado com os meus estudos de Psicologia. Tenho estado a criar workshops e novas sessões. Faço alguns workshops com um colega que é terapeuta para ajudar as pessoas a transformar as suas crenças negativas em algo positivo. Em 2024, irei juntar-me à expedição de um realizador brasileiro, o Yuri Sanada.

Tem alguns projectos em Portugal?
Ainda não, mas muitas pessoas em Portugal têm-me perguntado isso. E já respondi: só estou à espera do convite [risos].

Já mergulhou nas águas de Portugal?
Nunca! Em Portugal, só estive em Lisboa, Sintra, Porto, Nazaré e Aveiro. Adorei estar nas praias da Nazaré. Nunca tinha visto ondas tão grandes. Sentei-me e consegui observar quão poderosa e fantástica é a natureza.

Deveremos ter recordes de temperatura no planeta este ano outra vez. Um dos factores são as alterações climáticas. O que deve ser feito de forma urgente?
Acho que os indivíduos têm de sentir que têm algum poder e que tudo o que fizerem importa. A equação é muito simples: cada um de nós tem de mudar para que aconteça alguma coisa.

Com o que está neste momento mais preocupada no planeta?
Estou muito preocupada com a apatia. As pessoas não querem saber e pensam que o que fazem não tem importância. Se as pessoas pensarem que não têm importância, não vão actuar e fazer a diferença.

Está nas mãos de todos nós fazer com que a situação mude?
Está nas mãos de todos nós! Um dia um amigo disse-me: “Estou tão contente que estejas a salvar o planeta.” E eu disse: “Não, todos nós temos de fazer a nossa parte.” Uma só pessoa não consegue salvar o planeta. Todos nós temos de fazer a nossa parte, seja a que nível for.

Ainda estamos a tempo?
Claro!

Acredita que um trabalho como o que faz, de documentar e filmar a natureza, pode dar uma ajuda e lutar contra as alterações climáticas?
Acho que sim. Os filmes podem inspirar as pessoas e lembrar-nos que todos somos contadores de histórias e temos um papel a desempenhar. Cito o Eliesio Marubo, da tribo marubo, que me disse: “Poderás nunca saber se o teu filme salva vidas, mas tens de acreditar que isso acontece.”


O PÚBLICO viajou a convite da EDP