Teixeira dos Santos: críticas de Marcelo, Costa e partidos a Lagarde “foram despropositadas”

Teixeira dos Santos, antigo ministro das Finanças, sublinha que política monetária do BCE tem tido efeitos positivos e que o momento não é o de questionar o “saber” da instituição liderada por Lagarde

Teixeira dos Santos: "Portugal não se pode iludir com a chamada folga orçamental" Helena Pereira, Susana Madureira Martins (Renascença)
Ouça este artigo
00:00
08:49

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Fernando Teixeira dos Santos foi ministro das Finanças de José Sócrates, ex-presidente da Comissão de Mercados e Valores Mobiliários e avisa que, neste momento, "um país com a dívida de Portugal não se pode iludir com a chamada folga orçamental". Em entrevista ao programa Hora da Verdade do PÚBLICO-Renascença, defende, porém, que o próximo Orçamento do Estado deve dar prioridade ao alívio do IRS. Pode ouvir esta entrevista na íntegra no site do PÚBLICO ou na Renascença esta quinta-feira pelas 23h.

Como viu os vários alertas que Christine Lagarde [presidente de BCE] deixou na semana passada em Sintra, nomeadamente sobre salários, juros e inflação?
As declarações de Christine Lagarde não me surpreenderam. Já tinha dito que este não ia ser o momento para invertermos a política monetária que tem vindo a ser prosseguida. Não temos ainda sinais que a inflação esteja a baixar de uma forma sustentada. Lagarde falou em Portugal mas para vários países europeus e para outras regiões do mundo que estão atentas à política monetária da zona euro. A inflação está a baixar, está em cerca de metade do que estava em Outubro passado, e nesse sentido temos que reconhecer que a política do BCE está a produzir efeitos. Esta redução em apenas oito meses é algo de significativo. Todavia, existem sinais de que há resistência à descida da inflação. Tirando o conjunto de energia e bens alimentares, há um conjunto bens e serviços que teima em não baixar. É por isso que Christine Lagarde faz alertas. Ainda não estamos seguros que vamos ter a breve prazo uma aproximação da meta dos 2% de inflação. Isso só ocorrerá em 2025.

Christine Lagarde tem apelado a que os governos retirem os apoios que têm sido dados às empresas e às famílias para ajudar também nesse cenário. Considera que esses apoios também deviam ser retirados para o processo ser um bocadinho mais acelerado?
Eu aqui teria um pouco mais cuidado em seguir à letra aquilo que Christine Lagarde está a recomendar. A preocupação que manifesta tem a ver com o seguinte: a subida das taxas de juro procura colocar um travão no aumento da procura de bens e serviços na economia para que esse aumento não seja ele próprio um factor que alimente a inflação. Os governos, com os apoios que estão a dar, estão a alimentar a procura e portanto, há aqui uma contradição entre aquilo que é o sentido da política monetária, o seu impacto e aquilo que é o impacto das políticas de apoio, que são políticas expansionistas da procura. Por isso, as medidas de apoio têm que ser muito bem pensadas. São incontornáveis porque há famílias muito afectadas com esta conjuntura, com este agravamento de preços, com o aumento das taxas de juro. Não podemos é ter apoios para toda a gente porque essas seriam contraproducentes para com a política monetária anti-inflacionista do Banco Central Europeu (BCE).

Há medidas que faz sentido manter e há outras que já se podem retirar? Quais?
As medidas no domínio dos combustíveis, da energia, já não se justificam. Agora, aqueles apoios às famílias de rendimentos mais baixos devem manter-se, enquanto houver pressão da inflação e da subida dos juros.

Devem manter-se no Orçamento do Estado (OE) para 2024?
Manter-se em 2023 e em 2024, a manter-se este ambiente de inflação elevada e de agravamento de taxas de juro. Podemos reduzir um pouco os apoios, mas não estou a ver que seja possível pura e simplesmente eliminá-los a curto prazo. Se essas medidas forem focadas nesses segmentos sociais, o seu impacto na procura total na economia não será tão forte e, portanto, o risco de contrariar o sentido da política monetária para combater a inflação é muito menor.

Como é que viu as reacções, por assim dizer, indignadas, do Presidente, do primeiro-ministro e dos partidos, que criticaram a presidente do BCE?
Vi essas observações como despropositadas. Algumas delas não parecem terem percebido bem o que está em jogo neste combate à inflação e questionam aquilo que é a missão do BCE. Creio que não é neste momento que se deve questionar o papel do Banco Central Europeu e o que deve fazer. Isso está previsto nos tratados. Foi resultado de um acordo entre os chefes de Governo e de Estado dos países do euro. Não é num momento como este que vamos agora questionar aquilo que tem sido a orientação da política monetária na zona do euro desde 1999 e que tem sido uma política que, de facto, tem garantido a estabilidade de preços e tem garantido também taxas de juro mais razoáveis para o financiamento das nossas economias. Se até agora o Banco Central Europeu, pela sua acção, foi um factor estabilizador, não parece que esse seja o momento de questionar a sua missão, o seu papel e as medidas que deve tomar no sentido de assegurar a estabilidade dos preços.

Não partilha, por isso, da opinião do primeiro-ministro de que o BCE não está a compreender bem as origens desta inflação?
O Banco Central Europeu está a compreender as origens desta inflação, está a analisar os seus desenvolvimentos, a fazer o diagnóstico e a adoptar as medidas que acha adequadas. Não tenho dúvidas quanto à competência e ao saber do Banco Central Europeu quanto ao processo inflacionário, a sua origem, as suas consequências e as terapias que são necessárias.

Por que é que acha que o primeiro-ministro fez essa declaração?
Creio que essencialmente para fins políticos. A subida das taxas de juro não é simpática, como é evidente, impõe um ónus aos cidadãos, aqueles que têm empréstimos a taxa variável, já está a pesar de forma significativa nos orçamentos de muitas famílias. Creio que o primeiro-ministro procurou com esta declaração agradar a essas famílias que estão a ser mais afectadas por estas medidas mas, em boa verdade, não há uma alternativa. Nem ele apresentou uma via alternativa para combatermos esta inflação.

Se não conseguirmos baixar a inflação com uma relativa rapidez, se ela persiste durante muito tempo, corremos o risco de ela ficar enraizada durante muito tempo. E vai causar estragos que convém evitar. No curto prazo, pagamos um custo, mas impõe custos maiores se nada fizermos e se deixarmos a inflação à solta continuar.

O que é que um Governo pode fazer, nomeadamente, para descer as margens de lucro que se mantêm elevadas e que fazem com que os preços ainda estejam elevados? Deve-se alargar, por exemplo, a contribuição extraordinária sobre lucros excessivos a outras áreas?
Não vejo razões para se estar a alargar ou a impor contribuições extraordinárias. Os lucros num processo inflacionário tendem a aumentar porque os preços aumentam. E se os lucros são maiores, os impostos pagos também são maiores. O que é essencial para combater os abusos nas margens de lucro é que as regras de concorrência sejam de facto respeitadas. E vamos deixar que a economia funcione porque ela própria vai resolver estes problemas.

O Governo português actuou demasiado tarde? A Espanha, por exemplo, regista uma inflação menor do que a portuguesa porque agiu mais cedo, por exemplo, a nível do cabaz do IVA zero?
Tenho dificuldades em avaliar isso porque são economias diferentes, com estruturas de mercados diferentes.

O Estado está a arrecadar em impostos bastante mais do que aquilo que previa, o que significa que é maior a folga orçamental do que dispõe. O Governo já anunciou que vai mexer nos impostos no próximo OE e aumentar salários. Se fosse ministro das Finanças, quais seriam as suas prioridades?
Um país que tem uma dívida que andará nos 110% do PIB não se pode iludir com a chamada folga orçamental. A primeira grande preocupação que é preciso ter é a de reduzir a dívida que temos, porque a dívida que temos é um ónus muito pesado, não só sobre a geração presente, mas também sobre as gerações futuras. Não há folga orçamental enquanto houver uma dívida elevada. Não podemos pensar que a folga orçamental é como uma lotaria que nos saiu e que agora temos aqui dinheiro para gastar ao nosso bel-prazer. Não podemos cair nessa ilusão. Agora, é evidente que esta folga orçamental, devendo servir para reduzir o peso da dívida, também deve servir para algumas medidas como apoios sociais e alívio fiscal.

Do IRS ou IRC?
Tenderia a privilegiar o IRS, uma vez que quem mais paga impostos neste país são as famílias. Seria o mais desejável e mais prioritário neste momento. Não contra uma descida no IRC, mas faço um alerta: não estamos ainda em condições de termos descidas muito significativas dos impostos, porque precisamos dos impostos para pagar as despesas e as despesas com o envelhecimento da população tendem a ser maiores.

Que redução do IRS tem em mente?
Não estou em condições de adiantar valores. Mas uma vez anunciado um alívio fiscal por parte do ministro das Finanças, seria muito bom que cumprisse essa promessa e que está no Programa de Estabilidade, que foi enviado para Bruxelas.

O ministro da Economia acredita que no final do ano se possa chegar a um crescimento acima dos 3%. Acredita nisso também?
Estou a lembrar-me do João Pinto, do FC Porto, que dizia que prognósticos só no fim [do jogo].

Não está muito optimista.
Não digo que seja impossível. Tivemos um bom crescimento no primeiro trimestre. Vai muito depender do que vai acontecer neste segundo semestre. Se conseguirmos recuperar para níveis de crescimento como o que tivemos no primeiro trimestre já será muito positivo.

Sugerir correcção
Ler 19 comentários