Sílvio Vieira liberta-se no outro e no espaço

Segundo capítulo de uma trilogia, Equador continua a explorar a relação do indivíduo com um colectivo que lhe é estranho. Até dia 14, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

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Rita Cabaço é Rute Cabaço: a única personagem com nome e identidade neste Equador BRUNO SIMÃO
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Rute Cabaço é uma empregada de limpeza do Centro Cultural de Belém (CCB). E quando chega à black box da sala lisboeta, artilhada com todo o arsenal de produtos e utensílios para cumprir o seu trabalho, não demora a encontrar, largada no chão, uma folha de sala solitária. Ao recolhê-la e saciar a curiosidade em relação a um espectáculo intitulado Equador, há-de descobrir o seu nome na ficha técnica. E numa rápida consulta do calendário e do relógio, percebe que se encontra no palco exactamente na data e no horário previstos para as sessões. Liga para informar a coordenadora dos serviços que é possível que não consiga assegurar o seu trabalho nos próximos dias, porque foi apanhada por um compromisso inesperado. Desligado o telefone, suspira para si mesma: “Eu não sei fazer isto.”

Não é bem por aqui que começa Equador, segunda criação de Sílvio Vieira para uma trilogia iniciada com Arena, e que estará em cena de 7 a 14 de Julho no mesmo CCB que o próprio texto da peça evoca. Mas, de certa forma, é como se fosse. Porque os quatro “autóctones” (Anabela Ribeiro, Catarina Rabaça, Miguel Galambá e Miguel Ponte) que antes vemos em palco, seguindo uma lógica de teatro físico e de objectos, comportando-se como crianças espantadas com o mundo ou sem uma matriz de entendimento fixada, acabarão por ganhar sentido sobretudo na relação que Rute (interpretada pela actriz Rita Cabaço) com eles vai estabelecendo.

Estes quatro autóctones, assim designados enquanto seres que habitam o espaço, podem também ver-se como prolongamentos das personagens de Arena, privadas de uma fala inteligível (falam como Minions, andam como Teletubbies, exploram o espaço como as toupeiras das peças de Philippe Quesne, carregam o humor dos filmes de Jacques Tati). Perante objectos comuns cujos usos desconhecem, vê-los-emos a transformar um urinol num capacete e a enfiar longos tubos pelos braços e pela cabeça...

Equador e Arena partem de premissas semelhantes, e comuns, de resto, à trilogia que se fechará em 2024 com Zénite. Fazem entrar em cena uma figura que se vê obrigada a criar uma relação com “os outros”, com um colectivo a que não pertence, ao mesmo tempo que os espectáculos se constroem numa exploração muito específica do espaço.

Em Arena, o espaço em questão era a Garagem do Chile, antigo espaço de reparação de automóveis, reimaginado como lugar de teatro; em Equador, a premissa torna-se um pouco “mais desafiante”, reconhece Sílvio Vieira ao PÚBLICO. “É uma sala nua, muito pouco interessante do ponto de vista do mistério que ela própria contém: já conhecemos as black boxes, estamos fartos de olhar para elas”, comenta. “É mais difícil, não vou mentir, e a ideia de espaço está menos presente neste espectáculo.”

A ocupação do palco

Na construção de Equador, um dos “trabalhos mais difíceis e ingratos para os actores”, confessa o autor e encenador, passou por “lançá-los ao espaço vazio” na primeira residência artística em Ílhavo, quando as improvisações no auditório se socorriam sobretudo de cabos, luzes e material disponível no interior de um teatro. “Essa dificuldade de trabalhar o espaço enquanto espaço permitiu-nos jogar mais com a própria narrativa”, conclui Sílvio Vieira. Ou seja, havendo uma maior limitação da exploração do espaço no seu potencial cenográfico, investiu-se em compensação na exploração daquilo que acontece entre estas cinco figuras, a empregada e os quatro autóctones.

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Dessa condição resulta também a opção de não munir estes autóctones de nomes ou identidades próprias, de os propor como telas vazias, de forma a que Rute Cabaço possa “projectar neles figuras da sua vida, pessoas de quem gosta ou não, família”, assim trabalhando mais a fundo sobre “a relação que estabelece com os outros e o que isso diz sobre ela”, mas também sobre a identificação que possa emergir entre o público.

Perante o vazio do espaço e da situação — um espectáculo que está a decorrer e do qual ela, aparentemente, faz parte, sem que alguém lhe explique qual o seu papel ali , Rute Cabaço fará o mesmo que fez o elenco nas improvisações de preparação para o espectáculo: preenche esse espaço, alimenta-o com o que imagina poder ser aquela peça a partir do que conhece (a sinopse e a sua presença em palco).

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Rute Cabaço (Rita Cabaço) é uma empregada de limpeza que descobre casualmente estar recrutada para participar num espectáculo BRUNO SIMÃO

Após o pânico inicial, num momento de assumida sátira, elenca clichés das telenovelas portuguesas (há irmãos, há dinheiro, há traições, há casamentos, há pais que não sabiam que o eram, há polícia, há sequestros), voltando mais tarde num traje de princesa isabelina (como se criada por Jean-Paul Gaultier) ou entregando-se a uma dança de êxtase e libertação.

Enquanto isso, os autóctones vão desmontando o chão do palco e descobrindo por baixo dele uma superfície de água; a black box vai-se transformando num lugar cada vez menos reconhecível. Como se, em paralelo, com as suas diferentes ferramentas, todos procurassem uma libertação das regras a que estão sujeitos. Sem saberem ainda o que fazer com isso.

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