Mais um Natal

A vida regressava à rotina fabril do crescimento, interrompendo-se somente durante os passeios no pinhal, aos domingos, e num ou noutro momento menos severo da vida quotidiana.

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O segundo Natal da Sãozinha no asilo foi exactamente como o primeiro, muitas horas de missa seguidas de duas horas na cantina, uma fatia dourada, umas frutas passas e um presente embrulhado. A Sãozinha olhou para ele e não o quis abrir, queria o mesmo do ano passado, a boneca de papel que baptizou com o nome da sua mãe, Noémia. A irmã dos gritos, ao ver que a Sãozinha não abria o presente, gritou NÃO ABRES A PRENDA? OLHA QUE AINDA ARREFECE, e riu-se, ABRE LÁ ISSO E VAI BRINCAR. A Sãozinha, sem grande entusiasmo, pegou no presente, pareceu-lhe ter o peso e o tamanho de uma boneca de papel, seria uma boneca de papel?, desfez o laço e abriu o papel de embrulho. Era a boneca, a Noémia. Apertou o brinquedo contra o peito. A prenda de Natal, ainda que embrulhada como se fosse uma surpresa, era sempre a mesma, todas as meninas recebiam todos os anos o mesmo presente. A Sãozinha olhava enlevada — a irmã gorda diria que ela olhava devagar — para aquela boneca, que, para si, era a mais bela do mundo. Brincou com ela imaginado futuros, e, nas duas horas concedidas para isso, viveu várias vidas, várias existências, cabendo à boneca o faz-de-conta de responder à irmã dos gritos, à irmã gorda, à professora que vinha de fora para fabricar criadas, ao padre Antão, à Glória, à Maria do Rosário, ao pai e à Esperança. A boneca sabia responder a todos com determinação e segurança, sem medos ou hesitações. E, antes de o dia nascer, a boneca, tal como todos os outros presentes, era recolhida e guardada pelas freiras, ficando nesse estado de suspensão, alheia à brincadeira durante todo o ano, sem jamais ser tomada pela felicidade dos dedos das meninas. A vida regressava à rotina fabril do crescimento, interrompendo-se somente durante os passeios no pinhal, aos domingos, e num ou noutro momento menos severo da vida quotidiana, mas era sobretudo no Natal, durante umas horas, que era elevada à graça da brincadeira plena.

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