Imagens de filmes e vídeos antigos: a verdade sobre a desinformação que está a ser arma nos motins em França
Imagens que mostram jovens a conduzir uma carrinha da polícia não são dos motins em França, mas de um filme. É um dos exemplos de desinformação em torno dos distúrbios em Paris.
A imagem
É um dos muitos conteúdos falsos que estão a circular nas redes sociais enquanto França enfrenta novos motins, desta vez precipitados pela morte de um rapaz de 17 anos às mãos de um agente da polícia, de quem tentava fugir por ter sido apanhado a conduzir sem documentação, nos subúrbios de Paris.
Uma imagem partilhada sobretudo por contas de apoiantes da extrema-direita parece mostrar um grupo de jovens armados, um deles encapuzado, a segurar uma bandeira francesa, a conduzir uma carrinha das autoridades policiais do país. Ao lado dela, outra pessoa conduz uma moto com a roda dianteira levantada.
Num dos tweets em que a imagem está a circular, o autor — que se descreve como “o homem mais censurado do YouTube” — questiona: “Conseguem imaginar qual seria a resposta dos meios de comunicação social tradicionais ocidentais, se isto acontecesse na Rússia de Putin?”
Esse conteúdo teve 3600 partilhas e foi visualizado quase 700 mil vezes nos últimos três dias. Noutra conta, foi descrito como “a imagem do dia” em França e atingiu perto de 400 mil visualizações e 2500 partilhas antes de ter sido eliminada pelo próprio autor, que esclareceu que a fotografia tencionava ser meramente “ilustrativa” dos distúrbios na capital francesa.
Os factos
Acontece que a imagem não é uma fotografia dos protestos que se têm registado em França após a morte de Nahel Merzouk, o jovem de ascendência argelina e marroquina que morreu numa perseguição policial a 27 de Junho. De resto, não foi captada em nenhum dos protestos no país nos últimos meses.
Basta uma simples pesquisa reversa pelo conteúdo, colocando-o no motor de busca por imagens da Google ou em ferramentas como o TinEye (que localiza a primeira aparição de uma imagem na Internet), para desvendar que esta é uma cena do filme Athena, que se estreou em 2022.
No filme, que está disponível na plataforma de streaming Netflix e foi realizado pelo francês Romain Gavras, “o trágico assassinato de um rapaz desencadeia uma guerra total na comunidade de Athena, com os irmãos mais velhos da vítima no centro do conflito”. Apesar das aparentes semelhanças com o caso Nahel Merzouk, o filme estreou-se mais de nove meses antes dos novos motins em Paris.
Este é apenas um dos muitos exemplos de desinformação que está a circular nas redes sociais em associação com os protestos em França. Noutra publicação, com a descrição: “O que raio está a acontecer em França?”, uma imagem parece mostrar vários carros a caírem de um parque de estacionamento vertical.
Mas o mesmo exercício de verificação dos factos permite perceber que essa é uma cena de outro filme de acção: o oitavo da saga Velocidade Furiosa, de 2016, e filmado em Cleveland (EUA), como mostra inclusivamente o tweet aqui em baixo.
Outro exemplo é o de um vídeo que, segundo os conteúdos falsos, alegadamente mostra “um manifestante em posição de sniper [atirador furtivo] com uma arma roubada à polícia”. De acordo com a BBC, que analisou as publicações que estão a circular no Telegram, as imagens já foram publicadas no Twitter em Março do ano passado. Embora pareçam ter sido captadas nos subúrbios de Paris, e não se saiba o contexto de onde surgiram ou se a arma é real, são muito anteriores aos motins dos últimos dias.
A própria desinformação está a ser instrumentalizada para dar origem a novos conteúdos falsos. Ainda no domingo, o Governo francês veio a público desmentir um alegado comunicado de imprensa em que se anunciavam restrições ao acesso à Internet para travar o avanço das notícias falsas e diminuir a violência nas ruas.
O suposto documento incluía o logótipo e as informações de contacto do Ministério do Interior francês. Mas tanto esse gabinete como o Ministério da Europa e dos Negócios Estrangeiros esclareceram no domingo que o comunicado de imprensa é falso e que o Governo não decidiu impor restrições no acesso à Internet: “Este documento é falso, nenhuma decisão deste tipo foi tomada”, escreveram no Twitter.
Certo é que o Presidente francês, Emmanuel Macron, já veio a público defender que as redes sociais estão a desempenhar “um papel considerável” nos protestos, porque estarão a encorajar a violência nas ruas e a inflamar a opinião pública contra as autoridades policiais.
“Snapchat, TikTok e vários outros estão a servir como lugares onde foram organizadas reuniões violentas, mas também há uma forma de imitação da violência que, para alguns jovens, os leva a perder o contacto com a realidade”, disse o chefe de Estado francês em declarações ao país.
Nesse mesmo discurso, Macron afirmou que a maioria dos manifestantes nas ruas são “jovens ou muito jovens”: “Fica-se com a impressão de que alguns deles estão a experimentar na rua o que viram nos videojogos que os intoxicaram”, acusou o Presidente francês. E, embora o Governo tenha recusado que vai limitar o acesso à rede, Macron confirmou que está a trabalhar com as principais redes sociais para limitar a proliferação de conteúdos violentos: “Espero que estas plataformas sejam responsáveis”, apelou.
O veredicto
Regressando, então, à imagem com que se iniciou este Prova dos Factos: é falso que as imagens mostrem um grupo de jovens na posse de uma carrinha das autoridades francesas durante os protestos em Paris motivados pela morte de um rapaz de 17 anos durante uma perseguição policial. Na verdade, elas são de um filme que se estreou no ano passado na Netflix. E são apenas um dos muitos exemplos de desinformação relacionada com os distúrbios na capital francesa — que Emmanuel Macron já veio condenar, acusando as publicações nas redes sociais de apelar à violência.