José Dias, curador das receitas do Minho: o bacalhau racheado não é o bacalhau recheado

Em Braga, no restaurante Bem-Me-Quer, José Dias é um curador da tradição local, que vê cada vez mais em perigo. Do Bacalhau à Pescada à Primavera ou ao Arroz de vitela ou Pato à moda.

Cozinha do Minho
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José Dias, defensor do receituário de Braga e do Minho Nelson Garrido
NEG - 27 junho 2023 - RESTAURANTE BEM ME QUER BRAGA
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O bacalhau racheado mantém-se como um dos emblemas da casa Nelson Garrido
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Restaurante Bem-me-quer, em Braga Nelson Garrido
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Preservar e entender a cozinha tradicional é o que motiva José Dias, um gastrónomo empenhado, activo e estudioso das raízes e tradição culinárias. “O receituário tradicional, principalmente no Minho, é simples e de fácil interpretação. Difícil é a execução, que requer tempo, paciência, carinho, e sobretudo uma grande intuição”, explica, com a experiência e conhecimento de mais de três décadas em que o tem procurado levar à prática.

O seu restaurante Bem-Me-Quer, em Braga, é, por isso, um dos cada vez mais raros guardiões desse receituário, uma espécie de curador do património gastronómico da região que vê crescentemente em perigo. E a culpa, acusa, é dos poderes instituídos, “que pactuam com um ambiente de falsidade e adulteração e não se interessam nem por esse receituário nem pelas regras da actividade”.

Há, por isso, um crescente aligeiramento e adulteração, não só das receitas mas também da qualidade dos produtos, e tudo num contexto em que se assiste também a um interesse e procura crescentes pela tradição e identidade gastronómicas. Daí a pergunta retórica: “Quantos novos restaurantes se vêem abrir dedicados à cozinha tradicional? Nenhum, claro!” Um aparente contra-senso que explica com “esse alheamento dos poderes, as exigências para o licenciamento de um restaurante e a completa ausência de controle para com outros estabelecimentos que funcionam como falsos restaurantes”, o que faz com que a oferta acabe por ser de preço e não de qualidade.

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“Quantos novos restaurantes se vêem abrir dedicados à cozinha tradicional? Nenhum, claro!” Nelson Garrido

Não sendo cozinheiro - tem formação em Design e Engenharia (“mas também faço cozinha”) -, José Dias herdou do pai o gosto e sensibilidade gourmet e acabou por, no início da década de 1990, tomar as rédeas da casa de pasto que a sogra, Joaquina Soares Gomes, havia fundado em 1953. Desde a origem um dos mais rigorosos guardiões e intérpretes do receituário local, ou não se tivesse ela própria formado com Eusébia, a cozinheira do restaurante Narcisa que criou a receita de bacalhau que ficou célebre com o nome da casa.

“Trouxe basicamente três pratos que adaptou ao seu estilo, o bacalhau racheado, o bacalhau recheado e um frango assado que fazia com uma marinada específica”, conta o dono do Bem-Me-Quer, frisando que o objectivo foi desde sempre respeitar a origem histórica da casa. “Nunca mexi no receituário, ajustando apenas alguns pormenores de apresentação e serviço. E procuramos dar sempre aos clientes um breve contexto e explicação das receitas”, esclarece José Dias.

O bacalhau racheado, que era a base da receita da Narcisa, mantém-se como um dos emblemas da casa. Chama-se Bacalhau à Bem-Me-Quer e a única diferença é que em vez do pimento morrone leva alguns pickles picados no empratamento. Racheado porque, dada a qualidade, se decompõe em rachas (lascas) quando pressionado com o garfo. É alourado na sertã e no mesmo azeite alouram também as batatas às rodelas e feito o molho de cebolada com alho, pimenta, louro e pimentão. Junta-se tudo no tabuleiro e vai ao forno para envolver os sabores.

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O Restaurante Bem-me-quer nelson garrido

Entretanto esquecido, tal como frango assado, no bacalhau recheado a posta era aberta para acrescentar uma fatia de presunto e cozinhado no forno com molho bechamel e servido com puré.

A carta actual mantém também receitas originais como a Pescada à Bem-Me-Quer, o Arroz de Vitela, o Arroz de Pato à Moda de Braga e o de Galo de Cabidela, as Tripas com Mão de Vaca (como sempre, às terças-feiras), a par de outras mais sazonais como as Papas de Sarrabulho à Braga ou a lampreia (em arroz e à bordalesa).

Mesmo continuando a achar que “a cozinha tradicional é um risco para quem investe”, acrescenta que “felizmente hoje temos um apoio extra que é o turismo internacional”. São sobretudo brasileiros que resgataram o arroz de vitela, “uma receita de snack que era da Lusitana e foi levada para o Brasil e denominaram de Arroz à Braga”. A vitela é estufada à parte e o arroz feito com várias carnes, sobretudo pontas, couve branca e pimentos.

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O célebre bacalhau nelson garrido

Outras receitas de grande tradição são as de polvo, associadas aos padres e a ligação de Braga aos conventos da Galiza. Mas foi também por impulso dos turistas, neste caso canadianos, que o polvo é hoje um dos produtos mais consumidos no Bem-Me-Quer. Alguém, pelos visto influente, que esteve na Universidade do Minho, escreveu que era o melhor do mundo, e nos três meses seguintes esgotou-se o polvo na casa. “O que mais pedem é o arroz, seco ou húmido, com os filetes panados, mas a receita tradicional é grelhado e acompanhado com batata cozida e grelos”.

Receita histórica é também a do arroz de pato à moda de Braga, que foi ligeiramente adaptada para retirar algum excesso de gordura, mas José Dias lembra com saudade também o arroz de sardinha e a pescada à marinheiro, uma receita de barco que era feita na sertã e juntava moluscos.

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E para reflexão deixa mais uma questão. “Se tivéssemos que definir um prato português, lamento que hoje não se fale em pescada. Era um dos pratos mais nobres, tanto quanto o bacalhau, e sempre bem feito, tanto na costa como mais no interior. Não entendo porque andamos todos agora atrás do robalo e esquecemos aquele que era o nosso peixe mais nobre”.

Preservar e entender a cozinha tradicional é mesmo o que motiva José Dias.

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