Rússia quer proibir mudança de género, condicionando “toda uma geração”
O parlamento da Rússia aprovou um projecto de lei que proibirá a mudança de género. Vladimir Putin ordenou a criação de um instituto psiquiátrico para analisar o comportamento da comunidade LGBTQIA+.
A mudança de género nos documentos legais era um direito previsto na lei da Rússia desde 1997 (nessa época, o pedido tinha de surgir depois das cirurgias de afirmação de género). Contudo, em breve deixará de o ser.
A câmara baixa da Duma estatal russa aprovou um projecto de lei que abre a porta à proibição da mudança de género nos documentos legais. Isso restringe, também, as “intervenções médicas com o objectivo de alterar as características sexuais primárias ou secundárias” de uma pessoa, de acordo com um documento publicado na base de dados da Duma.
A lei ainda terá de passar para a câmara alta da Duma antes de ser promulgada pelo líder russo, mas a decisão vem na sequência da vontade expressa por Vladimir Putin de impedir a propagação de estilos de vida “não tradicionais”, encarados como a prova de decadência moral do Ocidente.
Quase ao mesmo tempo, Putin também ordenou a criação de um instituto para a investigação do comportamento social e sexual da comunidade LGBTQIA+. A criação deste instituto foi anunciada pelo ministro da Saúde russo, Mikhail Murashko, e está a gerar receio junto de activistas e membros da comunidade, por se temer que se possa tornar obrigatório frequentar centros de reeducação.
Como contam o El País, os activistas sentem que "a vida de toda uma geração" está condicionada.
De acordo com Vladimir Komov, porta-voz da organização de advogados Delo-LGBT, os “institutos médicos” que vão analisar possíveis comportamentos “anti-sociais” são apenas a ponta do icebergue da campanha do Kremlin contra a comunidade LGBTQIA+, num país onde as sessões de terapia ou conversão forçada existem de forma velada.
De acordo com o projecto de lei aprovado pelo parlamento russo, entre 2016 e 2022 quase três mil pessoas solicitaram a mudança de género. Por isso, Vladimir Komov considera um “absurdo” que o Kremlin continue a perseguir esta comunidade.
“Não importa o quão aterrador pode ser, mas tenho muito pouco a perder na Rússia”, disse a activista Ada Blakewell ao diário espanhol. Ada, mulher trans, foi obrigada a frequentar uma terapia intensiva entre o último Verão e Maio deste ano contra a sua vontade.
Tudo começou com uma mentira dos pais, que a convenceram a viajar de Kaliningrado para a Sibéria. Daí, seguiu para um centro de reabilitação para toxicodependentes que, na verdade, tratava todo o tipo de pessoas com doença mental.
Naquele centro, todos os doentes tomavam os mesmos comprimidos, mas cada pessoa tinha sessões individuais. A Ada mostraram-lhe “a castração de um javali” para que entendesse “o que é a operação de mudança de sexo” e obrigaram-na “a trabalhar em profissões ‘de macho’”, como a construção, recordou Ada Blakewell.
A jovem está há apenas um mês em liberdade e lamenta a homofobia e transfobia da sociedade russa, mas recusa sair do país por acreditar que a sua voz pode contribuir para o Estado democrático “prometido” há trinta anos, com o fim da União Soviética.
“Sinto-me perdida”
A decisão está a gerar dúvidas naqueles que já iniciaram o processo de mudança de género, uma vez que, como denuncia o movimento Delo-LGBT, o acompanhamento médico poderá terminar repentinamente nas próximas semanas. A emigração voltou a estar em cima da mesa para a comunidade LGBTQIA+.
“Viver na Rússia voltou a ser mais perigoso”, disse Yulia Alióshina, 32 anos, que, em 2021, e por poucas semanas, foi a primeira política trans na Rússia. Ao El País contou que, em 2020, depois de um ano e meio de exames psiquiátricos, conseguiu alterar o género no passaporte. Agora, numa altura em que já se preparava para a operação de afirmação de género, o novo projecto de lei terminou com qualquer esperança: "Sinto-me perdida."
Só em 2019 é que a Organização Mundial da Saúde deixou de considerar a disforia de género uma doença mental. Em Portugal, as pessoas trans podem mudar o nome no registo civil desde 2011, mas o processo foi agilizado a partir de 2018. No último ano, mais de 500 pessoas mudaram de nome e de género no registo civil.
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