IA e pistas para Lisboa: como se faz o Collision, o irmão canadiano da Web Summit
Como é que a Web Summit sabe quem ouvir no mundo tecnológico? E que surpresas de Toronto se vão repetir em Lisboa? Acompanhámos os bastidores do Collision, o evento da Web Summit em Toronto.
Há um tema incontornável no Collision deste ano, o evento-irmão da Web Summit que decorre desde segunda-feira e até quinta-feira na cidade canadiana de Toronto — e Artur Pereira, vice-presidente da organização, tem uma opinião muito directa sobre ele: não, a inteligência artificial não é o colosso demoníaco que meio mundo teme, enquanto a outra metade a venera.
De smartphone em punho, como símbolo de um “aparelho” que “mudou muita coisa” e cujo impacto só com o passar do tempo é que se torna evidente, o número dois da Web Summit e country manager da organização em Portugal explicou ao PÚBLICO a sua posição sobre: “Qualquer grande revolução traz destruição e traz criação. Foi sempre isso que a história nos ensinou”.
“Há um potencial muito, muito grande, mas acho que ainda há muita incerteza no ar. É preciso regular e é preciso vigiar”, disse Artur Pereira às primeiras horas do evento, que entrou em velocidade de cruzeiro na terça-feira. “Há muitas pessoas que pensam no que é que a inteligência artificial vai poupar ao indivíduo no dia-a-dia. Eu estou mais interessado em saber no que é que vai beneficiar a sociedade como um todo no futuro”, acrescenta.
Há alguém que diz ter a resposta — mas não é tão optimista. Menos de dois meses depois de ter abandonado a Google por preocupações sobre os riscos da inteligência artificial, Geoffrey Hinton — precisamente conhecido como o “padrinho” dessa tecnologia — estará no Collision em Toronto para “explorar o futuro” dela e analisar os “potenciais impactos na sociedade”.
No início de Maio, o perito já tinha feito soar o alerta. “Vejam como [a tecnologia de inteligência artificial] era há cinco anos e como é agora. Peguem nessa diferença e multipliquem para o futuro. É assustador”, escreveu na rede social Twitter, no dia em que anunciou a sua saída da Google para poder “falar sobre os perigos da inteligência artificial sem ter de considerar o impacto que terá” na empresa.
Por essa altura, e desde muito antes da polémica saída da Google, Geoffrey Hinton já constava entre os oradores confirmados no Collision, um dos maiores eventos tecnológicos da América do Norte. Foi um golpe de sorte ou um exercício de adivinhação? “Só muita atenção”, disse Artur. “Temos uma equipa cujo trabalho é definir quais são os temas que vamos querer discutir, quem são as pessoas mais entusiasmantes e como é que se garante uma diversidade de opiniões”, explicou.
Estas equipas estão no terreno mais de um ano antes de um evento como o Collision e sondam os oradores das edições passadas em busca do próximo grande tema. São, na sua maioria, ex-jornalistas com faro apurado para a notícia, engenheiros com conhecimento técnico sobre os temas e académicos habituados ao estudo. Juntos dedicam-se a um processo de “palpite informado” que servirá de base para cada um dos eventos com o selo da Web Summit.
Um ano difícil para as mulheres
Questionado sobre o que se pode esperar do Collision este ano em Toronto — que receberá o evento novamente em 2024 —, Artur Pereira apresenta um número: 450 das start-ups que estarão representadas até quinta-feira (30% do total) foram fundadas por mulheres. O número não chega para chegar ao ponto de equilíbrio da representatividade feminina — mas é, ainda assim, um recorde.
Carolyn Quinlan, responsável pela representatividade das comunidades nos eventos da Web Summit, suspira quando o PÚBLICO lhe pede um comentário aos 20 pontos percentuais que faltam para alcançar o verdadeiro equilíbrio de empresários do sexo masculino e do sexo feminino no evento. “É um conflito para mim”, assume em entrevista ao PÚBLICO. “É claro que quero ver igualdade absoluta em tudo o que fazemos. Mas mesmo quando chegarmos ao 50% vamos ter muito trabalho pela frente. Este é só um bom ponto de partida”, disse.
Um dos maiores obstáculos que Carolyn sentiu na preparação da edição deste ano do Collision foi a subida do desemprego no sector tecnológico na América do Norte. O desemprego, tal como o reduzido acesso ao financiamento para criação de novas empresas “continua a afectar mais as mulheres do que os homens”, critica a responsável pelo evento, “e vimos isso até com a pandemia”.
Mas, na edição deste ano do Collision, a organização da Web Summit focou noutra comunidade pouco representada no mundo tecnológico: os indígenas. As três comunidades nativas do Canadá — os inuits, os métis e os canadianos membros das Primeiras Nações — “têm sido historicamente muito sub-representados em todos os aspectos da vida, mas sobretudo na tecnologia”, explicou Carolyn. Isso está prestes a mudar.
Desde 2019 que a organização da Web Summit está em contacto com os principais representantes destas comunidades para criar pontes. Nem sempre foi fácil e Carolyn admite que a comunicação começou com o pé esquerdo. Mas, desde que os representantes indígenas estiveram no Collision do ano passado que a ponte se fortaleceu: “Queríamos alcançar a comunidade, ganhar a sua confiança, construir um relacionamento e deixá-la perceber saber que realmente queríamos ajudar quem estava interessado em tecnologia. Foi um grande sucesso”.
Carolyn não quer colocar uma etiqueta a este esforço. Questionada sobre o impacto que essa aposta da Web Summit teve nas comunidades indígenas no Canadá, a responsável pela representatividade prefere não avançar com os números do valor económico destas iniciativas: “Não se trata de obter uma receita para nós, muito sinceramente. Não teríamos sucesso como empresa sem todas essas comunidades nos nossos eventos. Por isso, todas as receitas são secundárias”.
Toronto como tubo de ensaio para Lisboa
É difícil encontrar tempo na agenda de Craig Becker, produtor da Web Summit, para uma entrevista às primeiras horas do evento em Toronto: é o momento dos últimos acertos, da comunicação constante e dos preparativos para as iniciativas paralelas do Collision.
Mas este ano, mais do que em qualquer outra edição do evento, o processo “está a correr bem”, assegurou. “As mesmas equipas estão de volta e todos já sabem o que está a acontecer. Toda a gente está com energia e bom humor, a contar piadas, e isso é óptimo”.
A consistência das equipas é, de resto, um dos segredos que garante a migração da organização entre o Rio de Janeiro em Maio, Toronto em Junho, Lisboa em Novembro e, por fim, Doha em Fevereiro. Mas Portugal tem sido o epicentro desse esforço, explicou Craig: muitos dos nossos parceiros fixos da Web Summit, em Lisboa e no resto do mundo, são portugueses que visitam as cidades dos eventos-irmãos.
Além disso, e embora a Web Summit garanta que procura encontrar fornecedores locais em todos os países por onde passa, Portugal continua a ser um fiel parceiro da organização do Collision em Toronto — não só em nome da “consistência” em que Craig aposta, mas também da poupança económica, assume o produtor: “O Canadá é um país caro. Por isso, há fornecedores portugueses que estão a enviar coisas para cá. Alguns dos nossos palcos aqui foram construídos em Portugal e já foram enviados e alguns dos construtores de stands também são portugueses”, enumera.
Mas esta edição do Collision em Toronto também está a ser um laboratório de experimentação para aquilo que vai acontecer em Lisboa dentro de cinco meses, como os materiais de palco utilizados para as competições de start-ups. “Estamos a usar paredes com luzes LED para que não tenhamos que mudar fisicamente o palco. Só mudamos o grafismo. É algo que estamos a testar aqui porque queremos muito fazer em Portugal, onde o evento é maior e essa logística também se torna mais complexa. Mas é algo que tenho vontade de fazer há anos”.
Craig também já está conformado com uma das maiores diferenças entre o Collision em Toronto e a Web Summit em Lisboa — e não, não falamos apenas do tamanho do evento em solo português, em comparação com as edições canadianas. É que a noite dos eventos com o cunho da Web Summit, um dos pontos altos da organização em ambas as cidades, é muito diferente de Lisboa para Toronto.
É tudo uma questão “cultural”, considera Craig: “No Canadá, as pessoas não se importam de ficar numa fila à espera que alguém saia para que possam entrar. Isso não funciona muito bem em Lisboa, por isso temos de ter mais atenção à gestão das filas”, exemplificou o produtor.